A Mente Perfeccionista – Como pensam as pessoas obcecadas pela perfeição


Por  Júlio  Leal1   e   Dinis  Mona2

Artigo publicado na Revista Adventista – Junho 2017 – Casa Publicadora Brasileira


Nas diversas esferas de convivência social, algumas pessoas sobressaem entre as demais por defenderem, com extremo zelo, certas crenças, normas de conduta e padrões considerados desejáveis, eficientes ou moralmente corretos. Elas podem se transformar em ícones que encarnam os valores e ideais perseguidos por um grupo social, ou, ao contrário, atrair a antipatia geral, dependendo de quanto carisma, moderação e tenacidade demonstrem ao defender seus pontos de vista.

Em geral, atitudes e comportamentos perfeccionistas são contraditórios. Tendem não só ao aprimoramento do indivíduo ou do grupo, mas também ao seu retrocesso e estagnação, por impedir, às vezes, o crescimento, a maturidade e o cultivo de relações genuínas, firmes e duradouras, com base no amor e na compreensão. No contexto religioso, dada a sua complexidade, uma análise da “mente perfeccionista” deveria explorar o assunto a partir de diferentes perspectivas, e é aí que a psicologia e a teologia podem se encontrar.

A Perspectiva da Psicologia

Dentro da psicologia, o perfeccionismo poderia ser definido como tendência para estabelecer altos padrões de desempenho em combinação com uma avaliação excessivamente crítica dos mesmos e uma crescente preocupação com os erros cometidos. Daí se deduz que o perfeccionista típico não só possui metas audaciosas, mas usualmente labuta com a distância que percebe entre elas e seu alcance real, coisas que estão sempre em delicada tensão.
Na psicanálise, o perfeccionismo foi definido como uma neurose obsessiva marcada pela meticulosidade, pela exigência e pelas expectativas não realizadas. Ou seja, como um componente do comportamento obsessivo-compulsivo, uma fissura entre as expectativas pessoais e alheias, uma inclinação irracional e disfuncional capaz de transformar num drama pessoal o   não alcance de certos padrões definidos normalmente de modo irrealista. Em O Poder dos Imperfeitos (Vozes, 2015, p. 23), Elisabeth Kuylenstierna explica que isso ocorre porque o perfeccionista “não faz diferença entre realização e autoestima”.

Nesse sentido, alguns estudos identificaram uma série de características importantes no perfeccionista típico:

(1) padrões excessivamente altos,

(2) grande preocupação com os erros,

(3) sentimento de dúvida quanto ao desempenho,

(4) preocupação com as expectativas dos pais e

(5) uma ênfase exagerada na exatidão, na ordem e na organização.

O perfeccionismo, porém, não precisa ser uma “neura” implacável e destrutiva. Embora exista, ainda hoje, certa tendência de tratar o perfeccionismo como algo patológico, muitos estudos já fazem uma distinção entre o “perfeccionismo positivo”, ou adaptativo, que geralmente produz efeitos benéficos, e o “perfeccionismo negativo”, ou desadaptativo, que não favorece o bom desempenho nem a saúde emocional.

Perfeccionistas bem adaptados são aqueles que fixam altos padrões e que, mesmo não conseguindo alcançá-los, não se estressam nem se deprimem com isso. Por outro lado, os perfeccionistas mal adaptados sofrem, ficam ansiosos, preocupam-se em excesso, costumam deprimir-se e ficar insatisfeitos consigo mesmos e com seu desempenho (independentemente de quão bom seja), além de se concentrarem mais na ideia de evitar o fracasso que na de serem bem-sucedidos. Os adaptados parecem ser capazes de “blindar-se” contra as emoções negativas ou canalizá-las e enfrentá-las de uma forma produtiva e equilibrada, coisa que os perfeccionistas inadaptados não conseguem fazer.

No contexto religioso, que geralmente promove ideais elevados, é de se esperar que existam tanto não perfeccionistas como perfeccionistas, e, neste último grupo, os bem e os mal adaptados. A inadaptação está ligada, entre outras coisas, à inflexibilidade psicológica, que se define como “estilo de interação rígido, estreito e pouco maleável perante experiências particulares indesejadas”, conforme explica o Dr. Jesse Crosby em “Examination of the relationship between perfectionism and religiosity as mediated by psychological inflexibility”, dissertação defendida em 2010 na Universidade do Estado de Utah (EUA).

O perfeccionismo desadaptativo se caracteriza por envolver padrões altos e inflexíveis em todos os tipos de situações, em contraste com um perfeccionismo mais adaptativo, no qual os padrões podem ser ajustados conforme a circunstância. O perfeccionista típico costuma crer que seu valor como pessoa depende do alcance dessa meta. Entre indivíduos assim é comum encontrar pessoas com baixa autoestima e dificuldades nos relacionamentos interpessoais, problemas cuja solução depende de uma mudança de atitude, como sugere o Dr. Julián Melgosa em Mente Positiva (CPB, 2016, p. 18-21).

Religiosidade do Bem e Religiosidade do Mal

Alguns estudos propuseram que a religiosidade e o perfeccionismo estão associados. Outros encontraram pouca ou nenhuma relação entre uma coisa e outra. Historicamente, desde Freud, talvez até antes, tem havido uma tendência de atribuir à religiosidade certos comportamentos estranhos e problemáticos. O perfeccionismo seria um deles. Todavia, pesquisas mais recentes mostraram que as pessoas experimentam sua religiosidade de diferentes maneiras, e é essa diferença – não a religiosidade em si – que interfere em suas atitudes, crenças, comportamento e resultados.

Os estudos concluíram que alguns indivíduos são “extrinsecamente orientados”, enquanto outros têm uma espécie de “motivação intrínseca” na qual fundamentam sua fé. Os intrínsecos se caracterizam por terem, na base de seus atos, crenças e convicções mais profundas. Já os extrínsecos fazem um uso mais pragmático, instrumental, utilitário e egoísta da religião, valendo- se dela para obter alívio, segurança, sociabilidade, entretenimento e status, entre outros benefícios.

Constatou-se também que o preconceito e a inflexibilidade na maneira de pensar estão associados mais estreitamente à religiosidade extrínseca. Os extrínsecos tendem a generalizações e estereótipos, mostram-se incapazes de distinguir com precisão as nuances implicadas em uma situação complexa e são inclinados a dar respostas rígidas para problemas de diversa índole. A literatura científica sugere que os indivíduos extrínsecos adotam atitudes autoritárias e etnocêntricas frequentemente associadas a tradições religiosas dogmáticas, enquanto os intrínsecos rejeitam tais comportamentos e atitudes. Assim, a religiosidade extrínseca representa o padrão psicológico mais problemático.

Obviamente, nem toda experiência religiosa é patológica, mas em certos indivíduos a religião (ou melhor, sua maneira entendê-la e praticá-la) parece estar relacionada com alguns distúrbios psicológicos. Os estudos que associam religiosidade a transtornos mentais identificaram a busca irracional da perfeição, promovida por estas crenças religiosas, como causa da depressão, da culpa e da vergonha.

O vírus da Rigidez Mental

Embora a vida religiosa não seja o único modo de se buscar aperfeiçoamento e autos superação, é um meio relativamente comum e acessível pelo qual muitos indivíduos podem chegar a perseguir esse objetivo. Assim, a religião pode se tornar um excelente caldo de cultivo para o desenvolvimento de atitudes perfeccionistas, ou ao menos pode significar uma oportunidade em que o perfeccionismo será, de alguma forma, reforçado.

Crosby concluiu que deixar de considerar a dimensão dupla tanto da religiosidade como do perfeccionismo leva a importantes equívocos no entender o no lidar com ambas as coisas. Ele propõe a existência de um traço comum problemático tanto no perfeccionismo patológico quanto na religiosidade doentia: a rigidez e a inflexibilidade de pensamento. Essa inflexibilidade normalmente inclui seis componentes principais:

Evitação de confrontos: Concentração exagerada da atenção em fatores internos indesejados e negativos (pensamentos, sentimentos, sensações corporais) junto a uma tendência a esquivar-se de experiências indesejáveis, dolorosas ou temíveis, mesmo as que poderiam resultar em benefícios no futuro.

Fusão cognitiva: Tentativa de mudar a forma ou frequência dos pensamentos por entende-los e tomá-los literalmente.

Foco na autoimagem: Apego a certa concepção de si mesmo com base, sobretudo, em experiências privadas ou em sentimentos individuais.

Vivência assíncrona: Sensação de que o passado negativo ou a desilusão com o futuro importa mais do que o aqui e o agora.

Falta de valores arraigados: Vida conduzida como um barco à deriva, sem um norte, sem valores sólidos que deem um rumo preciso às decisões e percepções da realidade.

Inação: Inércia, imobilismo e estagnação perante compromissos que exigiriam ações e atitudes orientadas por valores firmes.

A inflexibilidade psicológica constitui, portanto, uma explicação plausível para o fato de alguns indivíduos desenvolverem condições patológicas enquanto outros não são afetados. Nesse sentido, ela parece ser o oposto da resiliência. É por causa dessa rigidez psicológica que, ao enfrentar uma experiência aversiva, o indivíduo inflexível recorrerá a uma quantidade reduzida de opções em vez de explorar uma ampla gama de possibilidades.

Uma pesquisa com 376 estudantes da Universidade do Estado de Utah, dos quais 90,4% professavam alguma religião, concluiu que a inflexibilidade psicológica não tinha relação com a religiosidade intrínseca, porém a extrínseca tinha uma correlação significativa com a inflexibilidade psicológica.


Também se verificou que, quanto maior é a inflexibilidade psicológica do indivíduo, mais preocupado ele fica com a discrepância entre os padrões idealizados por ele e seu desempenho. A pesquisa mostrou que ter altos padrões não é algo ruim em si mesmo, mas, quando isso é combinado com a inflexibilidade psicológica, pode levar ao perfeccionismo desadaptativo. 

A Perspectiva da Teologia

No âmbito da teologia cristã, o perfeccionismo se define como uma ênfase no papel ou na contribuição do ser humano em seu aprimoramento pessoal perante Deus, com vistas ao alcance do favor ou da bênção divina; em última instância, da sua salvação eterna. Nesse sentido, a perfeição de caráter poderia (e deveria) ser perseguida e alcançada pelo cristão ainda nesta vida, mediante sacramentos, rituais, penitências, autodisciplina, boa conduta e/ou cultivo diligente da espiritualidade.

O problema é que, quando se entra na tradição cristã protestante, os sacramentos, rituais e “obras da lei” são rejeitados como meios de salvação, devido à crença na graça divina, tão completa e abrangente, que rejeita e elimina o valor dos atos e méritos humanos no processo de redenção do homem. Os cristãos protestantes creem que a justificação do homem perante Deus se dá unicamente pela graça, mediante fé e aceitação do sacrifício expiatório de Jesus na cruz do Calvário, sem a intervenção de obras meritórias.

Assim, qualquer que seja a importância ou o papel dos atos humanos dentro da religião, para não serem considerados “idolátricos” ou “heterodoxos”, de nenhum modo poderiam suplantar ou competir com os atos salvíficos de Deus, os quais naturalmente incluem a restauração do caráter humano e a transformação de sua conduta pecaminosa por meio da miraculosa ação do Espírito Santo. A doutrina da graça é, portanto, um golpe violento desferido na boca do estômago do orgulho e do protagonismo humanos.

E onde entra o perfeccionismo? Para entendê-lo, do ponto de vista da teologia, é preciso explorar antes o conceito de “perfeição”, do qual se origina toda a polêmica. Em princípio, trata- se de um imperativo encontrado nas próprias Sagradas Escrituras, um ideal essencialmente divino, não humano. Entretanto, não é senão a interpretação literalista de algumas poucas passagens (Gn 6:9; 17:1; Dt 18:13; Mt 5:48; 19:21; Ef 4:12, 13; Hb 6:1), desprovida de qualquer exegese, que leva a uma postura extrema, estranha, beligerante ou, às vezes, fundamentalista. Nesse caso, normalmente salta-se do texto diretamente para sua aplicação, prescindindo- se tanto da prudência e do bom senso como das regras hermenêuticas consagradas pelo uso.

Além disso, por mais difícil ou delicada que seja a tarefa de definir a “perfeição cristã”, é ainda muito mais complicada a tentativa de tornar instrumental essa definição, de modo a permitir que ela seja aferida e avaliada na vida de pessoas de carne e osso. Posto que não há uma certificação do tipo ISO ou um padrão externo de qualidade, estabelecido objetiva ou cientificamente, para medir a perfeição, resta como referência a vida de Jesus, que, para os perfeccionistas, mais que um Redentor messiânico, constitui um Modelo universal de conduta perfeita. Contudo, embora a ideia de ter Jesus como exemplo moral não seja, de forma alguma, objetável, frequentemente esse tipo de ênfase resulta na defesa obsessiva de padrões de conduta estritos aos quais as pessoas são instadas a ajustar-se de maneira mais ou menos uniforme e sem muita flexibilidade.

Entre outras coisas, a consideração de Jesus como padrão moral absoluto não leva realmente a sério sua natureza sui generis, expressa no Novo Testamento por conceitos e vocábulos como monogenes e prototokos. Perfeccionistas e legalistas em geral tendem a assumir que a propensão de Cristo ao pecado tenha sido semelhante à nossa, e assim sua vitória sobre o pecado seria a prova mais cabal e emblemática de que é possível, sim, viver uma vida sem pecado, a despeito de nossas inclinações para o mal e/ou de um ambiente de tentação e provas. Há livros inteiros dedicados a essa discussão teológica.

Outro detalhe importante aqui é que se confunde perfeição com impecabilidade, e, além disso, se impõe sobre o conceito judaico de perfeição uma interpretação que bebe da filosofia e da cultura gregas, um equívoco muito significativo. No pensamento grego, perfeição é um ponto de chegada, talvez a última estação de trem. No judaico, é um caminho, um processo longo e complexo (Pv 4:18). Uma variação dessa postura perfeccionista entre os adventistas é a que afirma que os justos vivos por ocasião do retorno de Jesus terão alcançado absoluta perfeição ou santidade.

Paralela a essa discussão, está outra, igualmente importante, sobre a relação entre fé e obras. A posição de Ellen White introduz uma complexidade digna de nota, ausente em certas posturas extremistas. Ela declara com clareza meridiana: “Os méritos do homem caído, em suas obras, jamais poderão obter a vida eterna para ele” (Fé e Obras, p. 20), e assim se opõe categoricamente ao argumento legalista-perfeccionista. Todavia, acrescenta: “Nenhuma obra do homem pode fazer com que mereça o amor perdoador de Deus, mas o amor de Deus, imbuindo a alma, o levará a efetuar as coisas que sempre foram requeridas por Deus e que o homem deve realizar com prazer” (p. 20). Aqui ela desestabiliza o argumento da graça barata, assinalando o dever do crente salvo em Jesus, mas também indica que o prazer, a alegria e a leveza são resultado da graça perdoadora derramada sobre o crente penitente.

O perfeccionismo desadaptativo se caracteriza por envolver padrões altos e inflexíveis em todo tipo de situações, em contraste com um perfeccionismo mais adaptativo, no qual os padrões podem ser ajustados conforme a circunstância.

O redimido tem seu preço pago na cruz. A salvação é uma dádiva de Deus para o homem, porém, para Deus, custou um alto preço, que o homem jamais poderá pagar. Ele tem que aceitar a dádiva, mas precisa manifestar na vida, como efeito (não como causa), os frutos da salvação, ou seja, as boas obras. Isso não contradiz em nada o entendimento de que a salvação se dá com base na aceitação pela fé e que é resultado da graça.


Quando encontramos a salvação, vem o crescimento em Cristo, que nos aproxima do caráter santo de Deus ao mesmo tempo em que nos faz ver nossa dessemelhança com Ele. O curioso efeito disso é uma relação inversa entre santidade e percepção de santidade, ou seja, quanto mais parecidos com Cristo nos tornamos (e, portanto, “mais santos”), menos nos reconhecemos como tal, pelo acentuado contraste entre nosso caráter e o dele. Isso significa uma visão realista das coisas.

Porém, o fanático típico, além de dar excessiva ênfase às suas próprias conquistas em detrimento das dos demais, tende a persegui-los e a acusá-los de viver deliberadamente abaixo do padrão aceitável. Cristo e sua graça ficam em segundo plano. Os esforços humanos e os padrões humanos de santidade ou perfeição roubam a cena. A noção de perdão que o fanático tem é distorcida, pois ele mesmo parece não aceitar que o perdão independe da transformação explícita do comportamento, mas unicamente da misericórdia e amor de um Deus que salva mesmo quem não merece.

O Conceito Bíblico de Perfeição

Dito isso, e indo direto ao ponto, a noção de perfeição na Bíblia, mais que ligada a uma religiosidade extrínseca, marcada pela austeridade, pelas penitências e pelo moralismo, se refere à imitação do caráter amoroso de Deus. Mais que um ponto de chegada, a perfeição é como uma linha trilhada pelo salvo, dia a dia, e mesmo pelos dias da eternidade, demonstrando o crescimento contínuo.

Talvez o conceito que melhor expresse, em termos práticos, o significado da perfeição cristã segundo a Bíblia seja hesed. Esse termo é um dos dois principais usados no Antigo Testamento para definir misericórdia, embora também seja traduzido por bondade, benignidade, fidelidade, favor, graça, benevolência e congêneres. Quando hesed se dá entre duas pessoas, estas não somente são benévolas uma com a outra, mas são também reciprocamente fiéis em virtude de um compromisso interior assumido. Daí o fato de hesedindicar também uma atitude de fidelidade para consigo mesmo.

No Antigo Testamento, quando hesed se refere ao Senhor, isso ocorre muitas vezes em relação à aliança que Deus fez com Israel (Gn 47:29; Rt 1:8; 3:10). Essa aliança foi, por parte de Deus, uma dádiva e uma graça oferecida a Israel, com efeitos extensivos a todas as nações. No entanto, posto que Deus se havia comprometido a respeitá-la, hesed adquiria, de certo modo, um caráter legal. O compromisso jurídico por parte de Deus deixava de vigorar, porém, quando Israel infringia a aliança e desrespeitava suas condições. Mas é aí justamente que hesed, deixando de ser uma obrigação jurídica, manifestava eu aspecto mais profundo: revelava o que era desde o princípio, ou seja, o amor que se entrega abnegadamente, o amor mais forte que a traição, graça mais forte que o pecado. Essa fidelidade por parte de Deus é, em última análise, uma fidelidade a si mesmo. O uso de hesed depende inteiramente de seu amor, de seu status como Criador e Redentor, e dos planos que Ele tem na vida de suas criaturas.

Outro vocábulo que, na terminologia do Antigo Testamento, serve para definir a misericórdia é rahamim. Diferentemente de hesed, que ressalta a fidelidade a si mesmo e a “responsabilidade do próprio amor” (que são características, em certo sentido, masculinas), rahamin, já em sua raiz, remete ao amor de mãe (rehem = regaço materno). Do vínculo mais profundo e originário, da unidade que liga a mãe ao filho, brota uma relação particular com ele, um amor singular. Pode-se dizer que esse amor é totalmente gratuito, não sendo fruto de mérito algum do filho, e que, sob esse aspecto, constitui uma necessidade interior: é uma exigência do coração. Rahamin é uma variante quase “feminina” da fidelidade “masculina”, expressa porhesed. É dentro desse “cenário psicológico” que rahamim engendra uma escala de sentimentos em que estão a bondade e a ternura, a paciência e a compreensão, ou seja, a disposição para perdoar.

Hesed e rahamim são apenas dois dentre os muitos termos bíblicos referentes a esse mesmo conteúdo fundamental. Neles se manifesta claramente seu aspecto antropomórfico original: ao apresentar a misericórdia divina, os autores bíblicos se servem dos termos ligados à consciência e experiência do homem de sua época. Desse modo, herdamos do Antigo Testamento não só a riqueza das expressões ali usadas para definir a misericórdia divina, mas também uma específica e obviamente antropomórfica “psicologia de Deus”: uma vívida imagem de seu amor, que, em contato com o mal e com o pecado humano, manifesta-se como misericórdia.

Assim, embora haja certo debate em torno do significado léxico de hesed, os eruditos concordam que hesed é um conceito de relacionamento. Nele há ao menos duas grandes dimensões: uma vertical (de Deus para com o homem) e outra horizontal (do homem para com o próximo), assim como as duas grandes divisões do Decálogo (Mt 22:37-40). Essas duas dimensões interagem dinamicamente. Nessa relação, o uso de hesed por Deus ao lidar com o homem deve constituir o modelo e o padrão a fim de que este aja de igual modo ao lidar com o próximo.

E o que dizer de Mateus 5:48? Esse versículo tem sido chave na argumentação em favor de uma soteriologia legalista. No entanto, uma exegese acurada desse texto tende a lançar por terra a conclusão perfeccionista equivocada e anticristã que parece estar presente ali. Uma comparação de Mateus 5:48 com Lucas 6:36 deixa claro que ser perfeito, segundo a Bíblia, é ser misericordioso e compassivo. Ser perfeito como Deus é saber perdoar. É amar pessoas indignas de amor, pessoas defeituosas e repulsivas, nossos próprios “inimigos” (Mt 5:44, 45). É nessa encruzilhada que o perfeccionismo é posto em xeque, o santarrão é barrado e o falso moralista é envergonhado. Perfeição cristã é amor genuíno e graça transbordante. A graça é o único antídoto possível para o perfeccionismo e o legalismo. A mente fundamentalista é inflexível e não sabe amar. Ela personaliza a si mesma, porém tende a caricaturar e desfigurar os outros. É generalista. Vê a floresta, mas não enxerga as árvores. Supõe que regras e leis tenham apenas letra, nunca espírito. São analfabetos letrados.

Assim, quer se trate de uma crença religiosa ou ênfase teológica, quer de uma inclinação da personalidade favorecida ou não por um contexto de busca de “altos padrões” ou por uma história de vida de abandono ou privação afetiva, a resposta para o dilema da busca da “perfeição” é invariavelmente hesed. Esse é também, coincidentemente, o caminho para a melhor saúde emocional, a paz interior e uma religiosidade plena.
Júlio Leal e Dinis Mona
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1- Júlio Leal é pastor, pedagogo, diplomado em Estudos Avançados em Psicologia e doutor em Educação
2- Dinis Mona é pastor e mestre em Teologia
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