Aposta na Verdade


“Não dirás falso testemunho contra o seu próximo”(Êxodo 20:16)
O Nono Mandamento

Por Loron Wade

Um dia, por volta de 1870, o gerente de uma grande ferrovia no Leste dos Estados Unidos teve a surpresa de receber a visita de um dos seus concorrentes.

Sem perder tempo com formalidades, o homem descreveu um esquema através do qual as duas empresas teriam condições de enganar um competidor de ambas e colocá-lo fora do mercado. O resultado significaria milhões de dólares em receita para as duas empresas.

De imediato, o gerente se afastou da sua escrivaninha e disse:

– Senhor, não é desse jeito que fazemos negócios aqui. Além disso, tenho certeza de que o Sr. Vanderbilt [o proprietário] não aprovaria.

– Não vejo por que incomodar o idoso cavalheiro com isso – continuou o homem. – E… não sei se lhe disse… temos uma ordem de pagamento de dez mil dólares em seu nome, se achar conveniente usá-la.

– Lamento – disse o gerente, de modo firme. – isso está fora de questão.

– hummmm, eu falei dez mil? Falei errado. Na verdade, a ordem é o dobro dessa quantia.

Diante disso, o executivo se afastou ainda mais da mesa e fixou os olhos no visitante, que, interpretando mal o motivo da reação, acrescentou apressado: – Mas podemos dar um jeito de subir para trinta mil dólares.

Colocando-se de pé num salto, o gerente rugiu: – Saia do meu escritório! Saia já, seu patife, antes que eu mande expulsá-lo!

Depois de o visitante ter-se retirado o secretário, que tinha ouvido a conversa, entrou. Encontrou o patrão sentado à escrivaninha, enxugando a testa.

– Senhor – disse ele – nem sei dizer quanto o admiro por…

– Não diga nada – respondeu o chefe, erguendo a mão. – A verdade é que eu precisava mandar esse homem embora depressa. Ele estava chegando perto do meu preço.

O que você acha? É verdade, como parece ficar implícito nessa história, que cada um tem seu preço? Talvez eu devesse expressar-me de outra maneira: quanto vale a sua honestidade? Você se venderia por trinta mil dólares?

Bem, sejamos honestos (não é disso que estamos tratando?): dependendo das circunstâncias, muita gente se venderia por menos.

Mas Todos Fazem…

Que tal contar uma mentira.

… para evitar constrangimento? “Lamento muito, Dona Helena. Não pudemos terminar seu trabalho ontem à noite porque nossa máquina estragou.” (Na verdade, a gente se esqueceu completamente.)

… para evitar ferir os sentimentos de alguém? “Muito obrigada por ter mandado aqueles bolinhos. Estavam uma delícia!” (Demos uma mordida e jogamos o resto fora.)

… para economizar dinheiro? “Não, não, Sr. inspetor da Alfândega; não compramos nada em nossa viagem ao exterior.” (Só umas bandejas de prata. Estão aqui embaixo das toalhas.)

… para tirar uma nota melhor? “Eu tinha acabado de digitar meu trabalho, Prof. Silas, mas acabou a energia elétrica antes que eu pudesse salvá-lo no computador” (versão moderna do “meu cachorro rasgou tudo”).

Ei, espere aí! Estávamos falando de mentiras que acabariam com uma companhia de estrada de ferro. Não é a mesma coisa que umas inverdades comuns e corriqueiras. Estas são pequeninas prevaricações de todo dia. Nada de maior importância, certo?

De fato, o sacerdote anglicano Joseph Fletcher quis levar a questão ainda mais adiante. Formulou um sistema ético que legitimaria a maior parte das mentiras “convencionais”.Em seu famoso livro sobre ética situacional, Fletcher ensinou que a ação “correta” num determinado caso depende da situação. Pode-se justificar até uma mentira colossal, alegava ele, se o motivo for correto.

É fácil entender por que esse jeito de pensar tem influenciado milhões de pessoas. Prolongamentos populares das idéias de Fletcher tornaram a mentira mais do que socialmente aceitável; muita gente a considera até essencial. 2

O Problema com a Mentira

Não é difícil descobrir que a Bíblia discorda frontalmente dessa ética escorregadia. O rei Salomão diz que os “lábios mentirosos são abomináveis ao Senhor” (Provérbios 12:22).Uma “abominação” é algo odioso e revoltante.

O apóstolo Paulo não é menos enfático. Coloca os mentirosos na mesma lista com “parricidas e matricidas”, “impuros” e “raptores” (1 Timóteo 1:9 e 10). Considera-os “transgressores e rebeldes” (verso 9). O livro do Apocalipse une-se ao coro, advertindo-nos solenemente de que “o que pratica abominação e mentira” não terá parte na eternidade de Deus (Apocalipse 21:27). Poderíamos acrescentar dezenas de outras passagens ao longo da Bíblia que fazem eco ao mesmo ponto de vista radical.

O que há de tão ruim com uma mentirinha de vez em quando? Por que a Bíblia insiste tanto em que se diga a verdade?

Considere o seguinte:

1. A mentira destrói a liberdade e a dignidade das nossas vítimas porque é sempre manipuladora. Mentindo para alguém, retiramos a sua capacidade de escolher racionalmente, de tomar uma decisão e de formar uma opinião com base em informações exatas. Isso significa que estamos tratando as pessoas com desprezo, como objetos a serem trapaceados e enganados para nossos próprios fins egoístas.

2. A mentira danifica a liberdade das pessoas que se envolvem com ela, porque rapidamente se enredam na teia de seu próprio engano e manipulação. Abraão Lincoln disse: “Nenhum homem tem memória suficientemente boa para torná-lo um mentiroso bem-sucedido.” Aqueles que dizem a verdade não precisam policiar-se para evitar os buracos que cavaram para si mesmos. Porém, os mentirosos continuam cavando mais fundo ao mentir cada vez mais, na tentativa de cobrir as falsidades anteriores.

3. A mentira destrói a confiança. Às vezes, é possível enganar as pessoas, mas geralmente não por muito tempo. A desconfiança e a suspeita aumentam exponencialmente quando se descobre uma mentira. Ninguém confia num mentiroso. E ninguém é mais desconfiado que um mentiroso. As pessoas que mentem com naturalidade não confiam nos outros. Supõem que sejam como elas mesmas.

4. A mentira prejudica o senso de valor próprio do mentiroso. Mesmo que seja possível enganar outras pessoas por algum tempo, é muito mais difícil lograr a nós mesmos. Posso trapacear com alguém, mas causo um grave dano a mim mesmo porque sei que sou falso e hipócrita.

5. A mentira destrói nossa relação com Deus. Essa pode ser a menor preocupação de alguém que se esforça para sair de uma enrascada. Mas, no fim, é o efeito mais devastador de todos. Vamos considerar um pouco mais esse aspecto.

O Deus Verdadeiro

– O povo pode me perguntar: “Qual é o Seu nome?” – afirmou Moisés. – Que lhes direi? (Êxodo 3:13).

– Ehyeh asher Ehyeh – disse a voz no meio da sarça ardente. “Eu Sou o Que Sou.” “Assim dirás aos filhos de israel: Eu Sou me enviou a vós outros” (verso 14).

Com isso, Deus Se identificou por Sua característica mais fundamental: Ele é Aquele que é.

O apóstolo João nos diz que, “no princípio”, o verbo que era Deus já estava presente (João 1:1). O texto não diz no princípio de que, porque isso não importa. Nem explica quando ocorreu esse princípio; isso também não interessa. Tudo teve um início, mas Deus não. Quando tudo começou, Deus já estava lá. Ele é todo-suficiente, imutável e sempre presente.

Por muitos séculos, o rochedo de Gibraltar (420 metros de altura) tem sido símbolo de tudo o que é sólido e confiável. Eu cresci à sombra do pico Pikes, uma montanha de granito sólido, chegando a 4.230 metros na direção do céu. Mas até mesmo essas poderosas metáforas desaparecem na insignificância quando as comparamos ao caráter de Deus.

A palavra hebraica mais frequentemente traduzida como “verdade” é emeth. Na linguagem cotidiana, a “verdade” se refere aos fatos. “vou lhe contar a verdade” significa: “vou lhe contar os fatos como os conheço.” Mas a idéia bíblica de emeth não é meramente a percepção que alguém tem das coisas; é a natureza intrínseca das coisas como são. Não é apenas algo que contamos, mas sim o que é.

O Salmo 31:5 refere-se ao Deus da emeth, o Deus da verdade (ver também Jeremias 10:10). Isso não quer dizer simplesmente que Deus diz a verdade. Ele é a verdade, a própria realidade. Toda e qualquer outra realidade se deriva dEle e é emprestada dEle.

O diabo, disse Jesus, “jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (João 8:44). A mentira e a falsidade são antíteses de Deus. São anti-Deus. Quando condescendemos com a mentira, nós apagamos Deus do nosso horizonte. E, se persistimos nesse hábito, rasgamos Sua imagem dentro da nossa alma.

A Hora da Grande Mentira

Jesus nos adverte de que está chegando a hora em que milhões de pessoas serão esmagadas pelo mais poderoso e sofisticado engano de todos os tempos. Líderes religiosos altamente convincentes operarão “grandes sinais e prodígios para enganar, se possível, os próprios eleitos” (Mateus 24:24; ver também 2 João 7). Esse movimento é chamado de “anticristo”, porque a missão de Jesus desde o início foi dizer a verdade acerca de Deus (João 18:37).

O apóstolo Paulo também fala desse poderoso engano do tempo do fim. Observe especialmente os versos nos quais ele revela a razão pela qual tantas pessoas serão enganadas. O anticristo, “o homem da iniquidade” (2 Tessalonicenses 2:3), virá “com todo poder, e sinais, e prodígios da mentira, e com todo engano de injustiça aos que perecem, porque não acolheram o amor da verdade para serem salvos” (versos 9 e 10).

Então, por que milhões de pessoas serão vencidas pelo último grande engano? Porque não amam a verdade.

Quando estudamos o sexto mandamento, aprendemos que “não matarás” exige que amemos ativamente nossos inimigos. Agora aqui, no nono mandamento, descobrimos que “não mentirás” exige de nós o amor à verdade.

Você consegue imaginar o que isso significa? O que fazem as pessoas que amam a verdade?

Se amamos a verdade, nós a buscaremos. Para nós, será importante descobri-la. Separaremos tempo e faremos o esforço necessário (João 5:39).O estudo diário da Bíblia e a oração pedindo entendimento farão parte normal da nossa vida (Atos 17:11). Como o salmista, oraremos: “Guia-me na Tua verdade e ensina-me” (Salmo 25:5). 

Jesus é a verdade (João 14:6). Sua vida toda foi uma revelação da verdade acerca de Deus (João 18:36 e 37). Assim, se amamos a verdade, estudaremos o significado de Suas palavras e ações.

Se amamos a verdade, nós a valorizaremos.

Jesus contou a história de um homem que estava arando e notou que o arado bateu de repente em alguma coisa dura. Era uma caixa antiga, cheia de tesouros. O homem vendeu imediatamente tudo o que possuía e comprou o campo. Jesus disse que o homem fez isso “transbordante de alegria” (Mateus 13:44). Por que a alegria? A resposta é óbvia, não é? Ele estava feliz porque reconheceu o valor daquilo que tinha encontrado. O homem sabia que o tesouro valia muito mais do que qualquer coisa que já houvesse possuído.

O “campo” na história de Jesus representa a Bíblia, a Palavra de Deus. O tesouro é a verdade que ela contém. Se realmente amamos a verdade, experimentaremos essa mesma alegria ao estudar a Escritura e descobrir a beleza dos seus ensinos. Para nós, a Bíblia será mais preciosa que ouro ou prata (Jó 28:15; Provérbios 16:16), mais preciosa do que a própria vida. Nas palavras do grande hino da reforma:

Sim, que a Palavra vencerá

sabemos com certeza;

E nada nos assustará,

Com Cristo por defesa.

Milhares de pessoas provaram naquele tempo a sinceridade dessas palavras enquanto ardiam os fogos da perseguição religiosa.

Se amamos a verdade, ela transformará nossa vida.

A Bíblia deixa claro que nada será realmente verdade para nós a menos que faça diferença na maneira como vivemos e nos comportamos (Gálatas 5:7; romanos 2:8).

Finalmente, se amamos a verdade, ficaremos ansiosos por transmiti-la. Uma vez tendo visto a beleza da verdade e experimentado seu poder (1 Pedro 1:22), ficaremos entusiasmados com ela e nos parecerá natural partilhá-la com outros.

Jesus disse que essa era a missão de Sua vida. Ele veio ao mundo como testemunha da verdade (João 18:37). Quando partiu, encarregou todos os Seus seguidores de serem testemunhas em nome dEle, para levar avante a mesma tarefa (Atos 1:8).

O Povo que não Mente

A profecia acerca do tempo do fim tem uma nota de grande encorajamento para nós. Diz que nem todos serão vencidos pela grande mentira. João, o revelador, viu em visão um grupo de pessoas vivendo nos últimos dias e seguindo o “Cordeiro por onde quer que vá” (Apocalipse 14:4). Essas pessoas seguem a Jesus, que é a verdade, e esse seguir significa obediência sem reservas.

A profecia então acrescenta que “não se achou mentira na sua boca” (verso 5). Se não se achou mentira na sua boca, significa que a verdade ocupava o seu lugar. Essas pessoas valorizam a verdade suficientemente para buscá-la, e a descobrem. Tendo encontrado a verdade, desejam partilhá-la, porque a profecia diz que ela está “na sua boca”. Querem falar a respeito dela. Aquilo que encontraram mudou sua vida, e agora não estão dispostas a conservá-la de modo egoísta para si mesmas. Como resultado, tornam-se destemidas testemunhas de Deus e da verdade, em meio ao engano.

A essa altura, a história terá completado o círculo. Os seguidores do Cordeiro serão dignos sucessores dos cristãos primitivos, que tiveram de enfrentar fortes pressões da correção política e do pensamento coletivo da época. Quando os líderes ordenaram que os apóstolos fossem açoitados, diz o relato, “eles se retiraram… regozijando-se por terem sido considerados dignos de sofrer afrontas por esse Nome. E todos os dias, no templo e de casa em casa, não cessavam de ensinar e de pregar Jesus, o Cristo” (Atos 5:41 e 42).

Os cristãos primitivos, assim como as pessoas que seguem o Cordeiro nos últimos dias, entenderam o sentido do nono mandamento. Para eles, não dizer falso testemunho significa dar um testemunho destemido da verdade. E dessa maneira foram dignos seguidores de Jesus, que disse: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida” (João 14:6).

___________   1 Joseph Fletcher, Situation Ethics (Londres: SMC, 1966).  

2 Não se pretende que esta seja uma declaração abrangente das ideias de Fletcher. É bastante comum nos estudos de ética apresentar exemplos de situações em que se pode justificar uma mentira, como, por exemplo, para salvar alguém das câmaras de gás dos nazistas. O problema é que um número muito grande de pessoas extrapola essas situações extremas para tornar a mentira aceitável sempre que nos encontramos numa circunstância desconfortável ou embaraçosa.  

3 Martinho Lutero, “Castelo Forte”.  

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