Comentário de Apocalipse 12 – Jon Paulien

Jon Paulien, Ph.D.
PhD. Diretor da Faculdade de Teologia da Universidade de Loma Linda
Tradução: Matheus Cardoso


Deste capítulo em diante, o Apocalipse é diferente. Pela primeira vez, vemos a descrição detalhada de um estranho animal, diferente de tudo o que existe na natureza. Ele tem sete cabeças e dez chifres. Essa é uma história de animais, mas, na verdade, não fala realmente sobre animais. É uma parábola semelhante a desenhos animados que usam animais para descrever a realidade humana.

Isso me lembra o filme da Disney, O Rei Leão. Nele, um grupo de leões domina (em geral de maneira benevolente) os animais que vivem nas planícies da África. Essa é uma história de animais cujo tema não é realmente animais. Na verdade, ela trata das relações entre pessoas e entre grupos de pessoas.

O livro de Apocalipse era como um Rei Leão para o mundo antigo. Ele não fala sobre animais, mas sobre questões, poderes e relações entre grupos de pessoas. Em Apocalipse 12, há uma mulher, um menino e um dragão. No capítulo 13, há outros animais, cada um suficientemente estranho para percebermos que não devem ser entendidos ao pé da letra.

Apocalipse 12 e 13 é como uma parábola ou desenho animado a respeito da nossa vida aqui na Terra.

Contexto do Novo Testamento

Apocalipse 12 nos revela dois fatos muito importantes sobre o contexto em que o Novo Testamento foi escrito. Em primeiro lugar, os desafios enfrentados por Jesus enquanto esteve na Terra se originaram em uma guerra celestial. Tanto os acontecimentos normais os inusitados da vida de Jesus tinham um significado cósmico, universal. Se Apocalipse 12 não estivesse na Bíblia, não saberíamos tanto sobre esses assuntos.

Em segundo lugar, após a ascensão de Jesus, o foco da guerra cósmica se moveu da pessoa de Jesus para a igreja. Em Apocalipse 12:6 e 12:14, há uma dupla referência a essa mudança. Usando uma linguagem repleta de imagens, o texto bíblico diz que, depois que a mulher dá à luz o filho e Ele é arrebatado para o Céu, a mulher é atacada pelo dragão. Ela é levada ao deserto e cuidada durante 1.260 dias. Sendo vez que o ministério de Jesus, desde o Seu batismo até a Sua crucificação, durou cerca de três anos e meio, a experiência da mulher neste capítulo se baseia no ministério terrestre de Cristo.

Características do capítulo

Como vimos antes, o cenário do capítulo 12 e seguintes se encontra em Apocalipse 11:19, que descreve a arca da aliança no templo celestial. Essa cena nos remete a pelo menos quatro temas: 1) a presença e a misericórdia de Deus; 2) os Dez Mandamentos, que estavam contidos na arca; 3) o Livro da Aliança, que ficava junto à arca e 4) o Dia da Expiação e seus rituais. O segundo tema, os mandamentos de Deus, parece ser o foco principal dos capítulos 12–14.

No capítulo 12, há três seções principais, mas é difícil estabelecer uma divisão exata. Ranko Stefanovic apresenta uma divisão que se baseia na narrativa literária. Nesse caso, a organização dos versos seria a seguinte: 1) 1-6; 2) 7-13 e 3) 14-17. Mas, se queremos estabelecer uma divisão com base na cronologia dos eventos históricos, então o paralelo entre os versos 6 e 14 precisa ser levado a sério. Nesse caso, a divisão do capítulo seria: 1) 1- 5; 2) 7-12 e 3) 6, 13-17.

Apocalipse 12:1

“Apareceu no céu um sinal extraordinário: uma mulher vestida do sol, com a lua debaixo dos seus pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça.”

Um sinal extraordinário

Essa é a primeira vez que a palavra “sinal” aparece no Apocalipse. A palavra indica uma cena visual impressionante (Apocalipse 12:3; 15:1), mas também se refere aos milagres demoníacos do fim dos tempos (Apocalipse 13:13-14; 16:14; 19:20). No Novo Testamento, “sinais” também podem ser presságios dos últimos dias (Lucas 21:11, 25; At 2:19). Portanto, o autor do Apocalipse pode estar usando a palavra para indicar que a segunda metade do livro irá focalizar os últimos dias da história da Terra.

Apareceu no céu

“Apareceu” traduz um verbo que está na forma passiva: literalmente, “foi visto” (em grego, ôphthê). Essa palavra é usada apenas três vezes no livro, todas elas em um trecho de apenas quatro versos (Apocalipse 11:19-12:3). O surpreendente é que, em geral, as visões do Apocalipse são introduzidas com as palavras “e eu vi” (kai eidon, um aoristo ativo).

Portanto, a expressão “foi visto” se destacaria para o leitor do texto original em grego.

Essa observação indica duas coisas. Primeira: Apocalipse 12 está intimamente ligado a 11:19, que funciona como uma “introdução do santuário” para a visão dos capítulos 12–14.

Segunda: Apocalipse 12 provavelmente é um ponto de virada do livro como um todo. Nos primeiros onze capítulos do livro, o foco está no movimento de toda a história do cristianismo. Mas, na segunda metade do livro (capítulos 12-22), a ênfase está nos eventos finais da história da Terra, até depois do retorno de Jesus.

Uma mulher vestida do sol

Sempre que um novo personagem aparece no Apocalipse (neste caso, a mulher), o autor gasta tempo em fazer uma descrição visual dele. Além disso, apresenta um pouco do passado do personagem antes de descrever a relação dos atos dele com a visão do capítulo.

Apocalipse 12:1-5 introduz três novos personagens: a mulher, o dragão e o filho homem. A apresentação da mulher ocorre em Apocalipse 12:1-2. As ações dela em relação à visão de Apocalipse 12 ocorrem nos versos 5-16.

Nesse texto, a mulher vestida do sol, da lua e das estrelas representa a continuidade do povo de Deus, começando com o Israel do Antigo Testamento e indo até o fim dos tempos.

No Antigo Testamento, essas imagens são encontradas no sonho de José (Gênesis 37:9), no qual as estrelas se inclinavam perante ele. Os símbolos também estão presentes na descrição da noiva de Salomão: “Quem é essa que aparece como o alvorecer, bela como a lua, brilhante como o sol, admirável como um exército e suas bandeiras?” (Cantares 6:10). Pessoas apaixonadas muitas vezes fazem comparações exageradas como essa!

Essa linguagem romântica é usada para descrever o relacionamento de Deus com Israel: “Pois o seu Criador é o seu marido, o Senhor dos Exércitos é o Seu nome, o Santo de Israel é seu Redentor; Ele é chamado o Deus de toda a Terra. O Senhor chamará você de volta como se você fosse uma mulher abandonada e aflita de espírito, uma mulher que se casou nova apenas para ser rejeitada, diz o seu Deus” (Isaías 54:5-6; veja também Ezequiel 16:8; Oséias 2:14-20; 1Coríntios 11:2; Efésios 5:25-32; Apocalipse 19:7-8). Quando Israel era fiel, usava-se a linguagem de um casamento feliz e bem-sucedido. Quando Israel era infiel, usava-se a linguagem de adultério, divórcio e prostituição (Ezequiel 16; 23; Oséias 2:1-13; Jeremias 3:6-10; Apocalipse 17:1-5).

Assim, a mulher representa todo o povo de Deus (as 12 estrelas remetem às 12 tribos de Israel e aos 12 apóstolos). Apocalipse 12 retrata uma continuidade entre o povo de Deus do Antigo Testamento e a igreja cristã. Embora Apocalipse 12–22 se concentre principalmente nos eventos finais da história da Terra, é dado o contexto mais amplo: uma breve história do povo de Deus desde a época do Antigo Testamento até o fim dos tempos.

Sete personagens no conflito

A mulher é a primeira das sete figuras marcantes de Apocalipse 12–14. As sete figuras são: a mulher, que representa o povo de Deus, tanto o Israel do Antigo Testamento como a igreja (Apocalipse 12); três figuras representam Satanás: o dragão (Apocalipse 12), a besta do mar e a besta da terra (Apocalipse 13); e três figuras se referem a Cristo: Miguel (Apocalipse 12), o Cordeiro (Apocalipse 13) e o Filho do Homem (Apocalipse 14). O conteúdo dessa seção é desenvolvido por sete figuras simbólicas.

Essa seção do livro deixa claro que a batalha entre o bem e o mal que se desenrola na Terra envolve uma luta cósmica que começou muito antes do nascimento de Cristo (Apocalipse 12:3-5).

Em outras palavras, o que acontece com a mulher (o povo de Deus) é determinado pelo que acontece na guerra cósmica entre Cristo e Satanás. Essa guerra alcançou a Terra, e o Apocalipse remove a cortina para que possamos compreender essa batalha cósmica.

Quando alguém luta contra o mal em sua própria vida, está enfrentando as consequências de um conflito muito maior.

Apocalipse 12:2

“Ela estava grávida e gritava de dor, pois estava para dar à luz.”

A mulher (povo de Deus) é descrita como grávida e prestes a dar à luz. A analogia entre Israel e uma mulher em trabalho de parto é comum no Antigo Testamento (Isaías 26:17-18; 66:7-9; Jeremias 4:31; Miquéias 4:10). Mas, embora a expressão “gritava de dor” reflita as palavras gregas para “trabalho de parto” e “nascimento”, há uma sentença adicional que nem sempre é bem traduzida. A mulher está “em tormentos” (basanizomenê) no processo de dar à luz. Sendo que, em grego, essa não é a linguagem normal para descrever o processo de nascimento, Stefanovic sugere que a intensidade da dor da mulher deve-se à tentativa do dragão de destruir o filho dela assim que nascesse (12:4).

Apocalipse 12:3

“Então apareceu no céu outro sinal: um enorme dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres, tendo sobre as cabeças sete coroas [em grego, diademas].”

Um enorme dragão vermelho

Um novo personagem é introduzido nos versos 3 e 4 como um segundo sinal: o dragão. Esse segundo sinal está intimamente relacionado ao primeiro; assim, o dragão e a mulher vão interagir até o verso 16. O dragão atua no contexto da visão de Apocalipse 12:5 em diante, até perto do fim do livro. O dragão é definido de maneira adicional em 12:9 como a antiga serpente, o diabo, Satanás e aquele que engana o mundo inteiro. A referência à antiga serpente recorda os leitores de que a guerra entre o dragão e a mulher descrita nesse texto começou no Jardim do Éden (Gênesis 3:1-15). Essa é a alusão primária aqui. A guerra de Satanás contra os descendentes de Eva é retratada de modo particular neste capítulo por meio da hostilidade em relação à mulher, que representa o povo neotestamentário de Deus (Apocalipse 12:6, 12-16).

A palavra “dragão” (em grego, drakôn) era amplamente usada no antigo Oriente Próximo para designar grandes criaturas mitológicas. Referências semelhantes podem ser encontradas no Antigo Testamento sob os nomes hebraicos Leviatã (Jó 3:8; 41:1; Salmo 74:14; 104:26; Isaías 27:1) e Raabe (Salmo 89:10; Isaías 51:9). A Septuaginta, a primeira tradução do Antigo Testamento para o grego, usa a palavra drakôn para traduzir o hebraico Leviatã (que às vezes pode se referir a baleias) em Jó 41:1; Salmos 74:14; 104:26 e Isaías 27:1.

O dragão de Apocalipse 12 é vermelho. Mas a palavra que indica a cor “vermelha” (em grego, purros), na verdade, é a palavra para “fogo”. O dragão é vermelho-fogo. Isso está em contraste com Apocalipse 17:3, em que a besta, que se parece com o dragão (possui sete cabeças e dez chifres), é de cor escarlate (kokkinon). O uso do vermelho-fogo liga Apocalipse 12:3 com 6:4, em que o cavalo vermelho (purros) é associado à ausência de paz, à matança e à espada sacrificial (veja comentários sobre Apocalipse 6:4). Ambas as palavras gregas para “vermelho” estão associadas ao derramamento de sangue (2Reis 3:22-23; Apocalipse 17:3, 6).

Sete cabeças e dez chifres

As sete cabeças e dez chifres do dragão aludem a Daniel 7, em que as quatro bestas que saem do mar possuem sete cabeças (cada uma das três bestas tem uma cabeça, e o leopardo tem quatro) e dez chifres (Daniel 7:4-8). A aparência do dragão antecipa 13:1 e 17:3.

Apocalipse 17:9-10 indica que as sete cabeças do dragão provavelmente são consecutivas, em vez de contemporâneas uma à outra.

Nos capítulos 12 e 13 de Apocalipse, há alusões adicionais e mais detalhadas a Daniel 7. Essa é mais uma evidência de que o dragão não representa apenas Satanás, mas também poderes terrestres a serviço dele. Em Daniel 7, bestas carnívoras representam impérios sucessivos que iniciam com Babilônia e terminam com Roma. Os dez chifres de Daniel 7 sucedem a quarta besta, representando o que ocorreria depois de Roma. Se as cabeças do dragão são consecutivas no Apocalipse (17:9-10), Roma pagã seria uma das sete cabeças.

É interessante observar que, nesse verso, existem coroas sobre as cabeças, mas não sobre os chifres. Essa situação será invertida em Apocalipse 13:1-2, que representa um período da história posterior a 12:1-5.

Tendo sobre as cabeças sete coroas

A palavra para “coroas” aqui (diadêmata) indica o tipo de coroa usado por reis e governantes, em vez do tipo usado por vencedores nos jogos olímpicos ou por generais quando retornavam de uma vitória (stephanos – geralmente uma grinalda de folhas ou de flores). Esse fato reforça a ideia de que as várias cabeças representam reinados ou impérios da Terra que o dragão (Satanás) usa para promover seus interesses. Enquanto a coroa “diadema”, assim como um trono, representa o direito de governar (veja também Apocalipse 13:1; 19:12), a coroa stephanos, no Novo Testamento, com frequência é uma metáfora para a vitória cristã (1Coríntios 9:25; 2Timóteo 4:8; Tiago 1:12; 1Pedro 5:4; Apocalipse 2:10; 3:11). Nessa cena, as coroas estão sobre as cabeças do dragão, em contraste com a besta do mar, que possui coroas sobre os chifres.

Embora o sentido primário do dragão seja Satanás, há um sentido mais amplo numa alusão secundária à tentativa de Herodes de destruir o bebê Jesus quando Ele nascesse (Mateus 2:12-18). O diabo era o poder por trás do trono quando o rei Herodes, o representante de Roma pagã, tentou matar Jesus Cristo (Apocalipse 12:5). Essa alusão tem levado muitos estudiosos do Apocalipse, especialmente católicos, a aplicar a figura da mulher de Apocalipse 12 a Maria, a mãe de Jesus. Tal aplicação parece intencional nesse texto, mas, na imagem desse capítulo, a mulher claramente representa mais do que apenas Maria; ela é Israel, tanto antes como depois do nascimento de Cristo.

Apocalipse 12:4

“Sua cauda arrastou consigo um terço das estrelas do céu, lançando-as na terra. O dragão colocou-se diante da mulher que estava para dar à luz, para devorar o seu filho no momento em que nascesse.”

Sua cauda

A referência à cauda do dragão lembra a quinta trombeta (Apocalipse 9:3, 10). Neste último texto, as caudas dos escorpiões/locustas ferem as pessoas. O modo como elas ferem as pessoas é esclarecido por Isaías 9:14-15, em que o juízo de Deus sobre Israel é exercido contra a “cabeça” e a “cauda”. De acordo com Isaías 9:15, “as autoridades e os homens de destaque são a cabeça, os profetas que ensinam mentiras são a cauda”. Portanto, a cauda é símbolo de engano, em vez de ataque militar. O dragão não lança na terra um terço das estrelas do céu por meio da força, mas pela persuasão, através de mentiras. Isso será fortemente confirmado à medida em que prosseguirmos no estudo de Apocalipse 12. O conflito no Céu não é travado com armas e tanques de guerra, mas com palavras e ideias.

Arrastou consigo

Todas as traduções bíblicas que pesquisei dizem que o dragão arrastou um terço das estrelas do céu e as lançou na Terra. A palavra para “arrastar” (em grego, surei) significa arrastar algo ou alguém contra a sua vontade (João 21:8; Atos 8:3; 14:19; 17:6). As estrelas foram tiradas do Céu e lançadas na Terra contra a vontade delas (ou, provavelmente, contra a sã consciência delas).

Há uma anomalia interessante aqui. O verbo “arrastar”, na verdade, está no tempo presente (indicativo presente), enquanto “lançar na Terra” está no tempo passado (indicativo aoristo). A maioria dos comentaristas, assim como a maioria dos tradutores nem sequer notam essa mudança, muito menos a explicam. Nas visões bíblicas, é normal usar o tempo passado (especialmente o indicativo aoristo), mas, às vezes (como veremos no capítulo 13), mudanças no tempo verbal dentro de uma visão são muito significativas. Neste caso, talvez não seja (ou, pelo menos, não consigo pensar em nenhuma razão para isso).

Um terço das estrelas do céu

Aqui parece haver uma alusão a Daniel 8:10, em que o “chifre pequeno” atira na terra parte das estrelas do céu, e as pisoteia. Naquele contexto, esse ato é um ataque ao governo de Deus. Assim, em ambos os casos, o uso parece ser metafórico, em vez de literal. Se algumas das estrelas que o dragão derruba estavam entre as doze da coroa da mulher, isso representaria perseguição a alguns dos verdadeiros líderes de Israel. Mas estrelas são definidas em Apocalipse 1:20 como “os anjos das sete igrejas”. Assim, é mais provável que a expressão seja uma referência à atividade de Satanás no Céu, muito antes dos eventos descritos no verso 5. De acordo com a tradição judaica, as estrelas representam seres celestiais que eram capazes de se rebelar contra Deus e, assim, se tornaram demoníacas e más (veja 1 Enoque 86:1–88:3; 90:24 e Testamento de Salomão 6:1-3 [26]; 8:1 [29]; 20:14- 17 [114]).

O dragão, portanto, arrastou e lançou (em grego, ebalen) um terço dos anjos do Céu para a Terra. Sendo que a palavra para “lançado fora” (NVI) ou “expulso” (ARA) é aplicada ao próprio dragão nos versos 9 e 10, a implicação de toda a história é que o dragão não estava descendo voluntariamente à Terra e ainda levou consigo um terço dos anjos. Esse evento seria anterior ao nascimento do filho e aos eventos de 12:7-9, que ocorrem em ligação com a ascensão de Cristo (12:5, 7, 10-11). A expulsão de um terço dos anjos aconteceu no início da Criação (veja Apocalipse 13:8; também Judas 6 à luz de Jó 1:6; 38:7).

No contexto da mulher e do dragão/serpente (veja Apocalipse 12:9 e os comentários sobre 12:3), a grande hostilidade do dragão em relação ao filho remete a Gênesis 3:15. Lá é profetizado que a serpente iria ferir o calcanhar da “semente” da mulher. Essa profecia foi cumprida na crucifixão de Jesus Cristo, que foi parte da experiência do filho varão aludida em Apocalipse 12:5, embora não simbolizada nesse verso (a cruz é aludida claramente no verso 11).

Apocalipse 12:5

“Ela deu à luz um filho, um homem, que governará todas as nações com cetro de ferro. Seu filho foi arrebatado para junto de Deus e de Seu trono.”

Um filho, um homem

Quem é o “filho varão” (ARA)? Neste ponto, o autor do Apocalipse rompe um pouco com a prática habitual de introduzir um novo personagem com uma descrição visual e um pouco de sua história antes do tempo da visão (veja Apocalipse 11:3-6; 12:1-2, 3-4). Nesse caso, não há uma descrição visual, e a “história”, na verdade, é uma descrição do que o filho fará no futuro: governar as nações e ascender ao Céu (não necessariamente nessa ordem!). Ser “arrebatado para junto de Deus” é claramente uma referência a Jesus Cristo.

Se, nesse verso, o filho é Cristo, a mulher que dá à luz a Ele seria o Israel do Antigo Testamento (as doze estrelas em sua coroa remetem às doze tribos), que era o povo do qual o Messias viria. Governar com cetro de ferro remete ao Salmo 2:7-9, em que o rei davídico é destinado a governar as nações. Esse texto é aplicado a Jesus Cristo também em Hebreus 2:6-9. O Salmo 2 é aludido também em Apocalipse 2:27-28, que se refere ao destino da igreja. Também pode existir uma alusão a Miqueias 5:2-4, em que o Messias vem de Belém (incluindo uma referência às dores do parto). Jesus é retratado como o rei ideal da linhagem de Davi, a qual Deus prometeu que jamais teria fim (veja 2Samuel 7:8-16).

O fato de o filho governar com cetro de ferro e ser arrebatado até Deus é uma clara referência a Jesus Cristo. Ele governa a Terra em princípio agora mesmo, mas o fará de maneira plena após a conclusão da guerra cósmica descrita em Apocalipse 12:7-12. No entanto, Jesus Cristo também partilhará Seu domínio com aqueles que O seguem (Apocalipse 2:27-28)!

Em Apocalipse 22:16, Jesus é identificado como “a resplandecente Estrela da Manhã”. Esse título ecoa a descrição do ser celestial (Lúcifer) em Isaías 14:12. A expressão classifica Jesus, assim como o dragão e as estrelas que o dragão arrastou consigo, como seres celestiais.

Quando o filho ascende ao Céu, no fim de Apocalipse 12:5, Ele está retornando ao lugar de onde veio. A história narrada aqui é de que o Comandante do Céu tornou-Se um bebê vulnerável, mas, depois de Seu tempo na Terra, retomou Sua posição no Céu (Apocalipse 12:7-12).

Esse verso menciona apenas três aspectos da experiência de Jesus: Seu nascimento como ser humano, Seu domínio sobre a Terra e Sua ascensão ao Céu. No entanto, todo o “evento Cristo” está implícito em Apocalipse 12:5: Seu nascimento, tentações, ministério terrestre, morte, ascensão e domínio sobre a Terra. O lado cósmico do conflito entre o dragão e o filho claramente começa muito tempo antes, no Céu (v. 4). Mas, no Jardim do Éden e no nascimento de Cristo, essa guerra foi trazida ao planeta Terra. Depois da ascensão de Jesus, um combate breve e final ocorre no Céu (v. 7-11), enquanto o fiel povo de Deus na Terra enfrenta o impacto da ira de Satanás (v. 12:6, 12-17). Jesus Cristo nasceu para morrer (v. 11) e agora está entronizado nos lugares celestiais (v. 10).

Note que, no equivalente histórico desse texto, há uma lacuna de aproximadamente 33 anos entre o nascimento e a ascensão do filho (Jesus Cristo). O cumprimento da profecia pode cobrir uma grande extensão da história em poucas palavras – ou até em uma vírgula.

Se reconhecemos a segunda vinda de Cristo em Apocalipse 14:14-20, podemos dizer que Apocalipse 12:6 a 14:13 descreve os eventos que ocorrem na Terra entre o tempo em que Jesus esteve aqui até o Seu retorno triunfante no segundo advento.

Apocalipse 12:1-5 – resumo

Há uma forte alusão ao Jardim do Éden nessa passagem. São mencionadas a mulher, a serpente (“a antiga serpente”, 12:9) e a semente (filho) da mulher. A tentativa da serpente de destruir a semente da mulher é frustrada. O ato de “ferir o calcanhar” (cf. Gênesis 3:15) não é descrito no verso 5, mas as alusões ao nascimento e à ascensão de Cristo nos levam a incorporar os elementos ausentes de sofrimento, morte e ressurreição.

Essa passagem introduz os atores que estarão no centro do drama a partir deste ponto do livro. A mulher representa o povo de Deus, que também será chamado de “remanescente” (12:17, ARC); “cento e quarenta e quatro mil” (14:1); “santos” (14:12); “reis que vêm do Oriente” (16:12); aqueles que “conserva[m] consigo as suas vestes” (16:15); os “chamados, escolhidos e fiéis” seguidores do Cordeiro (17:14) e “a grande multidão” (19:1). Embora chamado por muitos nomes, o povo de Deus do tempo do fim será um.

O dragão representa Satanás em sua guerra contra o Céu (12:4, 7-12). Representa também poderes terrestres por meio dos quais ele ataca o povo de Deus: a besta que sobe do mar (13:1-7); a besta que sobe da terra (13:11); Babilônia (14:8); o rio Eufrates (16:12); os reis da Terra (16:14; 17:2); a grande meretriz (17:1-5); a besta escarlate (17:3) e seus dez chifres (17:12-14). Embora esses agentes representem muitos poderes no decurso da história humana, no final todos são parte de uma coalizão que busca destruir a obra de Cristo na Terra (16:14; 17:1-14).

O filho homem representa Jesus Cristo, que também é conhecido por muitos nomes no livro de Apocalipse: Miguel (12:7); Cristo (12:10); Cordeiro (12:11); Jesus (12:17); “alguém semelhante a um filho de homem” (14:14); “o Senhor dos senhores e o Rei dos reis” (17:14);

“Fiel e Verdadeiro” (19:11); “Palavra de Deus” (19:13); “o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e o Fim” (22:13); “a Raiz e o Descendente de Davi, e a resplandecente Estrela da Manhã” (22:16). Agora que todos esses personagens estão apresentados, a ação começa!

O livro de Apocalipse não é sobre animais, embora, na superfície, pareça ser o caso. Em vez disso, ele fala sobre relacionamentos e conflitos de níveis cósmico e terrestre que têm consequências para cada indivíduo do planeta. Os personagens de Apocalipse 12 participam dessa batalha entre o filho/Miguel e o dragão/serpente. Haverá muito mais para dizer sobre esses símbolos à medida que explorarmos o resto do capítulo. Na continuação, vamos aprender verdades sobre o universo que não saberíamos através de nenhuma outra fonte.

O secularismo fornece apenas incertezas sobre o universo – com ele, não temos noção de onde viemos, para onde estamos indo ou o que está ocorrendo além da atmosfera da Terra, no universo estelar. Mas quem compreende e acredita no livro de Apocalipse sabe que o que está acontecendo neste planeta é parte de uma realidade muito maior de eventos. Esse fato é capaz de transformar o modo como pensamos e agimos no dia a dia. Pessoas comuns podem adquirir o senso de que são parte de algo realmente grandioso e importante.

Apocalipse 12:6-16 – introdução

Com o verso 6, a história do capítulo 12 inicia uma fase dupla. A mulher e o filho seguem rumos diferentes, e o dragão parece ir em direção de ambos. O filho ascende ao tono de Deus no Céu. No verso 7, o dragão é visto no Céu batalhando contra Miguel e Seus anjos.

Enquanto isso, a mulher foge para o deserto (v. 6, 14), onde é atacada pelo dragão/serpente (v. 12-15) e resgatada pela terra (v. 16).

Com essa fase dupla, descobrimos que as lutas com as quais Jesus e Seu povo se defrontam na Terra se originaram numa guerra celestial (também v. 4). O enfoque dessa guerra na Terra move-se de Jesus para a mulher/igreja após a Sua ascensão. É significativo saber que tudo o que fazemos tem relevância num sentido universal. As pequenas decisões que tomamos a cada dia têm implicações cósmicas.

A experiência da mulher no deserto, durante 1.260 dias, possui paralelo com o capítulo 17.

Lá uma mulher está assentada numa besta escarlate, que está coberta de nomes blasfemos e tem sete cabeças e dez chifres, o que relaciona a besta ao dragão (17:3). A mulher está vestida como o sumo sacerdote de Israel (v. 4-5), de modo que temos uma fusão de imagens positivas e negativas. Por um lado, as duas mulheres estão no deserto e são identificadas através de imagens relacionadas a Deus e ao Seu povo (Éden, Êxodo, sumo sacerdote). Por outro lado, a mulher de Apocalipse 12 é atacada pelo dragão, enquanto a mulher de Apocalipse 17 está aliada aos “reis da Terra” e à besta (que é um agente do dragão), e une-se a eles para guerrear contra o Cordeiro. O nome dessa mulher é Babilônia, que é a contraparte maligna da Nova Jerusalém. Não é de surpreender que João fique muito admirado com a visão da prostituta Babilônia (v. 6)! Essa é uma previsão da reviravolta que a igreja tomaria no decurso de sua história. Os maiores inimigos da verdadeira adoração a Deus costumam estar dentro de casa, e não fora!

Em outro sentido, as duas mulheres não representam tanto opostos completos, mas dois lados da mesma moeda. Uma igreja pode ser, ao mesmo tempo, apóstata (quando abraça o poder político e econômico) e o lar dos fiéis seguidores de Deus.

Apocalipse 12:6

“A mulher fugiu para o deserto, para um lugar que lhe havia sido preparado por Deus, para que ali a sustentassem durante mil duzentos e sessenta dias.”

A mulher fugiu para o deserto

Da imagem do Éden, na qual a mulher é descrita como uma Eva dando à luz seu filho, que é ameaçado pela serpente (v. 5), o texto se move para a imagem do Êxodo (v. 6, 14). A igreja (mulher) está no deserto do Sinai, entre o Mar Vermelho e o rio Jordão. Para os primeiros cristãos, o Êxodo (que foi como um batismo – 1Coríntios 10:1-6) através do “Mar Vermelho” representava o livramento do pecado. O cruzamento posterior, do Jordão, era como a segunda vinda de Cristo, levando-os à “Terra Prometida”. Assim, a experiência da igreja no deserto é vivenciada entre a cruz e a segunda vinda.

Mil duzentos e sessenta dias

Depois que o filho é arrebatado para o trono de Deus, a mulher foge para o deserto, onde é sustentada durante “1.260 dias”. Esse texto é praticamente repetido no verso 14, que volta a enfocar a história da mulher depois do interlúdio sobre a guerra no Céu (v. 7-12). Mas existem algumas diferenças entre os versos 6 e 14.

No verso 6, a maneira pela qual a mulher foge ao deserto não é mencionada. O verso 14 explica: “as duas asas da grande águia”. O verso 6 afirma que Deus preparou um lugar para que ali a sustentassem. Porém, no verso 14, a intervenção de Deus não é mencionada, mas

está apenas implícita. O verso 6 descreve o período de tempo como 1.260 dias, enquanto o verso 14 fala de “um tempo, tempos e metade de um tempo” (ARA). Os dois períodos de tempo claramente são o mesmo, de modo que “um tempo, tempos e metade de um tempo” deve ser entendido como três anos e meio (ou 1.260 dias). O último ponto de diferença é o acréscimo “fora do alcance da serpente” no verso 14. Os dois versos são paralelos e devem ser estudados juntos a fim de se compreender plenamente o “período de deserto” da mulher.

Se a mulher representa o povo de Deus, essa fuga para o deserto, ocorrida após a ascensão de Cristo, representa um período de obscuridade e perigo na experiência da igreja depois da época do Novo Testamento.

No livro de Apocalipse, sempre que um período de tempo é designado como 1.260 dias, ele é positivo e se refere ao lado de Deus no conflito. Em Apocalipse 11:3, essa expressão de tempo é usada em relação às duas testemunhas, e, em 12:6, é usada em ligação com a fuga da mulher. Por outro lado, sempre que o período de tempo é designado como 42 meses, ele é negativo e se refere aos inimigos de Deus. Os gentios pisam a cidade santa (11:2) e a besta do mar domina a humanidade (13:5) durante esse período de tempo. Por um lado, o povo de Deus é oprimido, vestido em pano de saco e foge para o deserto, mas sobrevive debaixo da proteção de Deus; por outro lado, é um período em que o mal domina. Os períodos de tempo são exatamente o mesmo, e essas duas expressões são como dois lados da mesma moeda.

Quando estive no deserto do Sinai, observei apenas dois lugares que eram totalmente verdes: um mosteiro perto de uma fonte de água e um pequeno reservatório próximo ao topo da montanha. Em outros lugares, não vi nem sequer uma folha de grama verde ou mesmo uma erva daninha. A região do Sinai é completamente isenta de vegetação – e não é um lugar onde se pode encontrar muito alimento! Depois do Êxodo, os israelitas estiveram acampados nesse local durante cerca de um ano. Não é difícil perceber por que era necessário um milagre para obter alimento. Inspirado nessa experiência, Apocalipse 12:6 retrata a igreja na Terra como passando pelo meio de um deserto espiritual, sendo alimentada espiritualmente (e, às vezes, fisicamente) por Deus.

Apocalipse 12:7-12 – introdução

Nessa passagem, a ação do capítulo move-se da Terra para o Céu, retornando à Terra nos versos 12 e 13. Os fortes paralelos que notamos entre os versos 6 e 14 indicam que a história na Terra é interrompida após o verso 6 e retomada nos versos 13 e 14. Assim, existe um movimento Terra-Céu-Terra no capítulo como um todo (e, sendo que a mulher e o dragão são vistos primeiro no Céu, poderíamos dizer que há um padrão Céu-Terra-Céu- Terra).

Podemos tirar duas conclusões a partir disso. A primeira é que os versos 7-12 funcionam como um interlúdio que interrompe a história do dragão perseguindo a mulher. A segunda é que o rápido movimento de ida e vinda entre a Terra e o Céu indica uma íntima conexão entre os dois no livro de Apocalipse. O propósito do livro é mostrar que os eventos e experiências que ocorrem na Terra estão intimamente ligados aos eventos que acontecem no Céu. O Apocalipse remove a cortina e nos revela essa cena mais ampla.

Apocalipse 12:7

“Houve então uma guerra nos céus. Miguel e seus anjos lutaram contra o dragão, e o dragão e os seus anjos revidaram.”

Miguel e seus anjos

Quando visto pela última vez, o dragão estava na Terra tentando devorar o filho que havia nascido. Mas o filho ascende ao Céu e não é mencionado novamente como tal. A batalha entre o dragão e o filho na Terra se transforma numa batalha entre o dragão e Miguel no Céu. Portanto, surge a pergunta: Miguel e o filho são a mesma pessoa? Uma pergunta relacionada diz respeito ao tempo em que ocorreu essa guerra celestial: quando o filho ascendeu ao Céu ou em algum outro momento?

O nome “Miguel” possui origem hebraica e significa “Quem é como Deus?” (há um paralelo em Apocalipse 13:4). Na tradição judaica, Miguel é um dos sete arcanjos que servem a Deus no Céu (junto com Gabriel e outros). O nome Miguel aparece cinco vezes na Bíblia, sendo três no livro de Daniel. Em Daniel 10:13, Miguel é “um dos príncipes supremos” (ou “um dos primeiros príncipes”, ARA) que ajuda Daniel contra o “príncipe do reino da Pérsia”. Isso sugere que este último príncipe é uma contraparte demoníaca dos anjos, provavelmente o próprio Satanás. Daniel 10 retrata uma guerra cósmica que ocorria na mente de Ciro, rei da Pérsia. Assim, há um forte paralelo temático entre Apocalipse 12:7 e Daniel 10:13. Em Daniel 10:21, Miguel trabalha em conjunto com a figura gloriosa de Daniel 10:5-6 para lutar contra os “príncipes” da Pérsia e da Grécia. Em Daniel 12:1, Miguel é descrito como “o grande príncipe, o defensor dos filhos do teu povo” (ARA). Portanto, Miguel, no livro de

Daniel, é um anjo-líder que trava a guerra cósmica em favor do povo de Deus.

No Novo Testamento, o nome Miguel aparece duas vezes, sendo uma aqui (Apocalipse 12:7). Em Judas 9, Miguel é claramente denominado “arcanjo” e contende com o diabo sobre o corpo de Moisés, que aparentemente ressuscitou dos mortos e foi levado ao Céu. Assim, a menção a Miguel em Apocalipse 12 é coerente com as outras quatro ocorrências do termo na Bíblia. Ele é o comandante dos exércitos celestiais que batalha contra Satanás em favor do povo de Deus. Muitos estudiosos têm concluído, portanto, que Miguel é outro título para Jesus Cristo, especialmente à luz de 12:10, em que o termo “Cristo” é usado para o oponente celestial do dragão.

O papel de Miguel é outra indicação de que a guerra no Céu não é tanto militar, mas uma guerra de palavras sobre a pessoa e o caráter de Deus (veja o papel da cauda do dragão em 12:4 e suas “acusações” em 12:9-10).

Como regra, sempre que um novo personagem aparece no Apocalipse, o autor faz uma pausa para fornecer uma descrição visual e um pouco da história do personagem (veja Apocalipse 1:13-16; 11:3-6; 12:1-2, 3-4) antes de continuar descrevendo o papel do personagem na visão específica. Mas isso não ocorre aqui com Miguel. Nem há uma típica descrição introdutória quando o “filho varão” (ARA) aparece no verso 5. Isso indica que nenhum deles é um novo personagem, mas que são outras formas de descrever um personagem que já havia aparecido no livro. Esse personagem seria Jesus Cristo, o Filho do homem (1:13), o Cordeiro (5:6) e provavelmente os anjos de Apocalipse 8:3-5 e 10:1-2. Assim, Apocalipse 12:7 descreve a guerra cósmica entre Cristo e Satanás em simbolismo apocalíptico.

O dragão e os seus anjos revidaram

A figura central de Apocalipse 12 é o dragão, que aparece em cada cena. Ele luta contra a mulher e o filho em 12:1-5. Depois, persegue a mulher até o deserto (v. 6, 13-16). Ele luta contra Miguel e Seus anjos no Céu e é lançado de lá (v. 7-12). Finalmente, ele “saiu” para guerrear contra o remanescente da semente da mulher no verso 17. Assim, o dragão aparece em cada cena do capítulo e há um senso de sequência de eventos no tempo. Ele aparece com a mulher grávida; então ataca o filho dela depois que ele nasce; luta contra Miguel no Céu quando o filho ascende; em seguida, persegue a mulher até o deserto; e, finalmente, guerreia contra o remanescente. Portanto, a figura do dragão na história ajuda a fornecer uma sequência e uma moldura de tempo para os eventos do capítulo 12.

Embora esse verso venha depois da ascensão do filho no verso 5, há aspectos no texto que não se enquadram na cronologia. O verbo grego egeneto (geralmente traduzido como “houve”) significa literalmente “veio a ser”. Ele é usado para a Criação em João 1:3 e na tradução grega de Gênesis 1, implicando que aconteceu algo que não estava lá antes. Por isso, a English Standard Version traduz muito bem: “Now war arose in heaven” (“Então surgiu guerra no Céu”). Eu traduzi o texto desta maneira (seguindo R. H. Charles): “And war burst forth in heaven” (“E eclodiu guerra no Céu”).

No entanto, esse verso ecoa a tradução grega (Teodocião) de Daniel 10:20. Literalmente, Apocalipse 12:7 usa esta fraseologia um pouco estranha: “Miguel e Seus anjos para fazer guerra contra o dragão […]”. Em Daniel, a guerra celestial já está sendo desenvolvida pelo ser celestial que aparece a Daniel. Em outras partes de Apocalipse 12, existem ecos a Gênesis 3 (“a antiga serpente”, v. 9) e Zacarias 3 (“o acusador dos nossos irmãos”, v. 10). E a figura do diabo e Satanás já está ativa no Céu nos relatos de Jó 1 e 2, Isaías 14 e Ezequiel 28.

Portanto, embora a cronologia da narrativa de Apocalipse 12:5, 9-10 situe a guerra no Céu no tempo da ascensão de Cristo (em paralelo com Apocalipse 5), claramente há fortes referências ao início do conflito cósmico, muito antes dos tempos do Novo Testamento.

Quando o conflito aconteceu?

Assim, a linguagem desse verso desenvolve uma tensão deliberada entre a cronologia do capítulo (ascensão do filho) e ecos de um conflito muito anterior, mas que continua até hoje. Porém, quando esse conflito cósmico realmente teve início?

Em Apocalipse 1:16, 20, as estrelas na mão direita do Filho do homem representam os “anjos” das sete igrejas. Se essa é uma explicação do significado das estrelas no livro como um todo, as estrelas de 12:4 representam anjos. O dragão arrastou e lançou (em grego, ebalen) um terço dos anjos do Céu para a Terra. O ato de “arrastar” indica que um terço dos anjos não foram com ele por sua própria convicção, mas porque foram enganados. Esse evento (a expulsão dos anjos) seria anterior ao nascimento do filho e aos eventos de 12:7, que ocorrem em ligação com a ascensão de Cristo (12:5, 7, 10).

Quando essa primeira batalha ocorreu? Apocalipse 13:8 diz que o Cordeiro (Jesus Cristo) foi morto “desde a fundação do mundo” (ARA) (em grego, apo katabolês kosmou). Assim, em algum sentido, a cruz (e a batalha que ela representa) remete ao princípio da Criação.

Apocalipse 12:4, então, indica que o conflito cósmico iniciou entre os anjos aproximadamente na época da Criação original. A batalha de 12:7-9 ocorre no contexto da cruz e da ascensão de Cristo (12:5, 10-11; veja também 5:6-14), mas contém ecos daquela batalha cósmica anterior.

A batalha original foi uma batalha sobre a lealdade dos seres celestiais. Eles manteriam sua lealdade original a Deus ou aceitariam as mentiras de Satanás sobre Deus e usaram sua liberdade para controlar a própria vida? Esse verso indica que, na batalha original, o dragão (Satanás, de acordo com 12:9) teve êxito em conquistar a lealdade de um terço dos associados angélicos de Deus. Fora do livro de Apocalipse, a Bíblia não diz muito sobre essa batalha celestial e sua relação com todos os conflitos terrestres.

Apocalipse 12:8

“Mas estes não foram suficientemente fortes, e assim perderam o seu lugar nos céus.”

Esse verso nos diz que o dragão não foi suficientemente forte para derrotar Miguel, e que ele e seus anjos perderam o seu lugar no Céu. Esse é um eco de 12:4, quando o dragão e seus anjos foram fisicamente expulsos do Céu. Mas a cruz e a entronização de Cristo expulsaram Satanás do Céu em um novo sentido, espiritual (veja comentários de 12:10). Ele não tem mais permissão de entrar lá como “acusador dos nossos irmãos”. Nas palavras de Sigve Tonstad, Satanás, no princípio, foi expulso da inocência e, na cruz, foi expulso da influência.

O tema do dragão não ser “suficientemente forte” encontra-se no pano de fundo de toda a história de Apocalipse 12. O dragão falha em devorar o filho (12:5), falha em sua guerra contra Miguel e os anjos do Céu (12:7-8), e a terra frustra seu ataque à mulher no deserto (12:14-16). Todo esse fracasso prepara o cenário para o episódio final do conflito, que é introduzido em 12:17. Com base em 12:12, ele teme perder seu lugar tanto na Terra como no Céu.

Apocalipse 12:9

“O grande dragão foi lançado fora. Ele é a antiga serpente chamada Diabo ou Satanás, que engana o mundo todo. Ele e os seus anjos foram lançados à Terra.”

O grande dragão foi lançado fora

O verbo “lançado fora” (ou expulso; em grego, eblêthê) é idêntico à palavra usada no verso 10, e ambos estão na forma passiva. O dragão é expulso contra a sua vontade, presumivelmente por Deus/Miguel/Cristo. A mesma palavra ocorre na forma ativa (ebalen) no verso 4. Lá, o dragão é o agente, e lança (na Terra) um terço das estrelas (anjos). A linguagem respectiva indica que o dragão é expulso do Céu contra a sua vontade e leva consigo um terço dos anjos contra a vontade deles (eles teriam preferido permanecer no Céu, mas, por se unirem ao dragão, perderam essa liberdade).

O dragão dos versos 3 e 4 é aqui definido como a antiga serpente, chamada diabo e Satanás. “Diabo” vem do grego e significa “acusador” ou “difamador”. “Satanás” vem do hebraico e significa “oponente” ou “adversário”. Os dois papeis são combinados em Zacarias 3:1.

Portanto, embora o “dragão” seja claramente uma referência à antiga Roma em sua tentativa de destruir o menino Jesus (Apocalipse 12:3-5; Mateus 2:12-18), o enfoque aqui vai muito além da máscara terrestre e revela o perfil do próprio Satanás à espreita, por trás das ações de um poder terrestre. Isso se assemelha ao que acontece na passagem sobre Miguel em Daniel 10. Nesse texto, é feita uma distinção entre o “príncipe” da Pérsia e os “reis” da Pérsia. O príncipe da Pérsia é o poder demoníaco que está por trás dos tronos terrestres da Pérsia.

Ele é a antiga serpente

Embora as palavras “diabo” e “Satanás” não sejam usadas, as descrições do ser celestial de Isaías 14 e do querubim guardião de Ezequiel 28 apresentam a personalidade dessa figura, como veremos no resumo de Apocalipse 12:7-10.

A expressão “antiga serpente” é uma alusão à narrativa do Jardim do Éden, em Gênesis 3. O Apocalipse esclarece o que não estava tão óbvio em Gênesis: que, na serpente que confrontou Eva, se escondia um personagem cósmico que originalmente era o anjo do Céu.

Mas, em Apocalipse 12, ele não era um anjo qualquer, e sim o comandante da rebelião celestial. Ele então foi expulso do Céu para a Terra e atacou primeiro Eva (Gênesis 3:1-12), depois Jesus Cristo (Apocalipse 12:5) e então a igreja ao longo da história (v. 13-16). Então, por trás de cada conflito da Terra, existe um conflito muito maior, que tem proporções cósmicas. Por trás de cada história terrestre, há uma história muito maior.

Assim como a serpente enganou Eva sobre o verdadeiro caráter de Deus, o dragão (que é a serpente, o diabo e Satanás) é aquele que engana o mundo todo. De acordo com Apocalipse 12, as mentiras de Satanás são a raiz de todo engano ao longo da história e, especialmente, à medida que o fim se aproxima (v. 17).

Apocalipse 12:10

“Então ouvi uma forte voz dos céus que dizia: Agora veio a salvação, o poder e o Reino do nosso Deus, e a autoridade do Seu Cristo, pois foi lançado fora o acusador dos nossos irmãos, que os acusa diante do nosso Deus, dia e noite.”

Então ouvi uma forte voz

O conceito de uma “forte” voz ocorre frequentemente no livro de Apocalipse, e, em alguns trechos, ele aparece várias vezes. A expressão também aparece nos sete selos (Apocalipse 5:2, 12; 6:10; 7:2, 10), nas sete trombetas (8:13; 10:3), nas mensagens dos três anjos (14:7, 9, 15) e, finalmente, na própria segunda vinda (19:17). Ela é usada com frequência em momentos decisivos de transição. Existe claramente uma forte ligação entre Apocalipse 12:10 e a cena do livro de Apocalipse 5. Essas fortes vozes geralmente ocorrem no próprio Céu ou no céu atmosférico. Apocalipse 10:3 e possivelmente 6:10 são exceções na localização dessas vozes.

João não identifica quem no Céu produz essa forte voz, mas a expressão “acusador dos nossos irmãos” (12:10; essa leitura aparece em todos os manuscritos) indica os 24 anciãos, que representam a humanidade redimida nos lugares celestiais (veja comentários sobre Apocalipse 4:4). Em Apocalipse 6:11; 19:10 e 22:9, os “irmãos” são claramente agrupados com João em contraste com os anjos e seres divinos.

Agora veio a salvação

A palavra “agora” (em grego, arti) expressa algo que ocorre no presente imediato (Mateus 26:53; João 13:37; 1Coríntios 13:12) ou imediatamente depois de alguma outra coisa (Mateus 9:18; João 9:19, 25). Aqui o uso indica que os eventos desse verso ocorrem no momento ou um pouco depois de Satanás ser expulso do Céu (note que a expressão “lançado fora” ou “expulso” é repetida nesse verso). A expulsão de Satanás nesse verso está no contexto do estabelecimento do reino de Deus por meio da entronização de Cristo. Esse é o mesmo momento que a entronização do Cordeiro em Apocalipse 5.

No instante em que Satanás é lançado fora, o Reino de Deus e a autoridade de Cristo são estabelecidos. De um lado, Cristo é exaltado, e, de outro, Satanás é expulso. Quando isso aconteceu? A resposta está no verso 5, quando o filho é arrebatado para junto de Deus e de Seu trono. Essa parece ser uma referência ao momento em que, após Sua morte na cruz, Jesus ascende ao Céu e toma o Seu trono, no ano 31 d.C. Esse fato nos mostra que, no conflito cósmico, o evento decisivo é aquele que ocorreu na cruz (veja Colossenses 1:20). É na cruz que Satanás foi expulso e Cristo foi exaltado.

Um importante texto paralelo está em João 12:31-33. Esse é outro texto que fala sobre “agora”, embora seja usada uma palavra grega diferente (nun). “‘Chegou a hora de ser julgado este mundo; agora será expulso [em grego, ekblêthêsetai] o príncipe deste mundo.

Mas Eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a Mim.’ Ele disse isso para indicar o tipo de morte que haveria de sofrer” (João 12:31-33). A morte de Cristo foi o evento decisivo tanto para a história humana como para a história cósmica. Ela resultou na expulsão de Satanás e na posse do trono por Cristo. Ele possui o direito de governar por causa da cruz (Apocalipse 5:9-10).

Foi lançado fora o acusador dos nossos irmãos

A última parte desse verso lança luz sobre a expulsão. Satanás é lançado fora do Céu como o “acusador dos nossos irmãos”. Em certo sentido, são as acusações que Satanás que foram lançadas fora do Céu. Esse texto contém uma alusão ao livro de Jó. Em Jó 1 e 2, Satanás aparece no Céu e acusa Jó (1:6-12; 2:1-6), em primeiro lugar, de ser fiel a Deus só porque Ele o protegia e o abençoava com grande prosperidade (Jó 1:9-11). Em outras palavras, Satanás acusava Jó de servir a Deus pelo que poderia receber dEle. Deus permitiu a Satanás mudar a sorte de Jó, mas Jó permaneceu fiel (Jó 1:12-22).

Em Jó 2:4-5, Satanás então acusa Jó de egoísmo supremo. A perda da família e da riqueza ainda o havia deixado com vida e saúde, de modo que ele não tinha motivos para se preocupar. Satanás argumentou que, se tivesse permissão para tirar isso dele, Jó amaldiçoaria a Deus na Sua face (Jó 2:4-5). Deus permite a Satanás tirar a saúde de Jó, mas não tocar em sua vida (o que, de qualquer forma, invalidaria a evidência para o desafio).

Mas, ainda assim, Jó permanece fiel (Jó 2:6-13).

Com o pano de fundo de Jó, aprendemos que, na época do Antigo Testamento, Satanás ainda tinha acesso à sala do trono de Deus como representante da Terra. Ele usava esse acesso para lançar acusações contra o povo de Deus. Mas, com a cruz e a entronização de Cristo, essas acusações foram silenciadas no Céu. Satanás foi banido para a Terra, onde essas acusações ainda são ouvidas.

Houve, portanto, duas expulsões de Satanás no decurso da guerra cósmica. A primeira ocorreu na “fundação do mundo” (Apocalipse 13:8, ARA), quando Satanás e seus anjos foram expulsos do Céu fisicamente (12:4). Eles não poderiam mais morar lá. Mas, desse momento até a cruz, Satanás ainda tinha acesso à sala do trono celestial, para acusar e tentar continuar seu engano. No entanto, algo aconteceu na cruz que silenciou essas acusações para sempre. O aspecto cósmico da controvérsia foi decidido. Os seres celestiais não mais dariam nenhuma credibilidade às mentiras de Satanás.

Em Apocalipse 12:9-10, uma segunda “expulsão” é descrita. Nos tempos do Antigo Testamento, embora Satanás e seus anjos não morassem mais no Céu, as suas atividades na Terra ainda tinham eco em alguns dos seres não caídos do Céu. No contexto da cruz, Satanás é expulso do Céu em sentido espiritual ou filosófico. Sua habilidade de influenciar seres celestiais se encerrou com a entronização de Cristo.

Acusa diante do nosso Deus, dia e noite

A referência a “dia e noite” recorda Apocalipse 4:8 e 7:15, em que o louvor e a adoração a Deus são a atividade constante das criaturas fiéis do Céu. No capítulo 12, as acusações de Satanás ressoam no Céu “dia e noite”. Isso claramente situa as acusações de Satanás no concílio celestial, do qual ele outrora participava, mas passou para o “lado negro” e agora acusa o governo de Deus na pessoa daqueles que O honram e servem na Terra. O paralelo ressalta o fato de que Deus é destinatário final dessa acusação, como foi com Jó. Satanás acusa os crentes como forma de atacar o governo do próprio Deus. Veja comentários sobre Apocalipse 12:10-11.

Apocalipse 12:7-10 – resumo

Embora não existam fortes paralelos verbais entre esses versos e Isaías 14 e Ezequiel 28, é difícil imaginar a audiência original do Apocalipse lendo essa descrição da guerra no Céu sem se lembrar das implicações cósmicas de duas zombarias do Antigo Testamento contra o rei de Babilônia (Isaías 14:4) e o rei de Tiro (Ezequiel 28:1). Ainda que essas passagens sejam direcionadas primariamente contra inimigos terrestres de Israel, os profetas ecoam a linguagem do conflito cósmico. A linguagem de Isaías 14:12-19 e Ezequiel 28:12-19 vai muito além da situação local, e remete à batalha cósmica entre Deus e Satanás, que ocorreu no início dos tempos. Assim como tudo o mais no Apocalipse, as duas expulsões de Satanás (Apocalipse 12) podem ser compreendidas de maneira mais plena à luz do Antigo Testamento.

Especialmente Gênesis 3, Jó 1–2, Isaías 14 e Ezequiel 28 fornecem um contexto importante para essa passagem.

Embora seja claro que a expulsão de 12:9-10 seja diferente e posterior à de 12:4, é menos claro como devemos compreender os versos 7 e 8. A cronologia do capítulo sugere que esses versos descrevem eventos que ocorreram imediatamente após a ascensão do filho, mas a evidência do texto sugere a batalha anterior à Criação (12:4 à luz de 13:8).

O verbo grego egeneto implica o início da guerra, em vez de sua retomada. Ecos de Daniel 10, Gênesis 3, Jó 1 e 2, Isaías 14, Ezequiel 29 e Zacarias 3 apontam para o início do conflito cósmico, muito antes dos tempos do Novo Testamento. Assim, os versos 7 e 8 criam uma tensão deliberada entre a cronologia do capítulo (a ascensão de Jesus e a batalha que ocorreu no Céu naquele momento) e a linguagem ecoando a guerra no Céu que ocorreu antes da criação do mundo. Portanto, no contexto da narrativa do capítulo, a referência primária de 12:7-10 é à conclusão da guerra celestial no contexto da cruz, mas os versos 7 e 8 também remetem o leitor ao início dessa guerra.

Este provavelmente é o melhor momento para observar os fortes paralelos entre o tema da guerra no Céu de Apocalipse 12 e 13 e a cena da sala do trono celestial dos capítulos 4 e 5.

Embora não exista nenhuma menção a Satanás e suas “acusações” na cena do trono, as atividades da corte celestial nos capítulos 4 e 5 fazem todo o sentido à luz do que estudamos. É quase como se os capítulos 4 e 5 fossem um paralelo antitético da guerra celestial dos capítulos 12 e 13. Observe os paralelos entre essas duas partes do Apocalipse.

Em primeiro lugar, há o contraste entre duas trindades*. Existe o dragão, a besta do mar (13:1-10) e a besta da terra (13:11-18) na última cena, em contraste com a verdadeira Trindade em Apocalipse 4:8 e 5:1-6 (“Aquele que está assentado no trono”, o “Cordeiro” e “os sete espíritos de Deus”). Tanto o Cordeiro (5:6; 13:8) como a Besta do Mar (13:3) são “mortos” (ou abatidos; em grego, esphagmenon, esphagmenên, esphagmenou) e então retornam à vida para receber aclamação universal (5:9-12; 13:3-4). O Cordeiro recebe poder dAquele que está assentado no trono (5:7, 12), enquanto a Besta do Mar recebe poder do dragão (13:2). Tanto o Cordeiro como a Besta do Mar são agentes de outra pessoa e possuem autoridade para agir em lugar dela (5:1-6; 13:1-2). Tanto a visão do Cordeiro como a da Besta do Mar devem ser lidas à luz do conflito cósmico entre Deus e o dragão.

Há um paralelo adicional entre a guerra no Céu (e seu desenvolvimento terrestre no capítulo 13) e a cena do trono de Apocalipse 4 e 5. A própria imagem do trono focaliza o direito de governar. Irrompe o clamor: “Quem é digno de tomar o livro e assentar-se no trono?” (veja também Apocalipse 3:21). A guerra no Céu ocorre no contexto do trono e da corte celestial (Apocalipse 12:5). Assim, no cerne dessa guerra está uma contenda sobre quem tem o direito de assentar-se no trono com Deus: o dragão ou Cristo? Quem é a verdadeira testemunha do caráter de Deus: aquele que deseja dominar ou Aquele que Se sacrifica pelos indignos? O pano de fundo de Isaías 14 e Ezequiel certamente vem à mente aqui.

Em um mundo livre de pecado, o trono claramente pertence a Deus e ao Cordeiro (Apocalipse 22:1-3). Esse desenlace nos traz à lembrança a unidade universal de aclamação na conclusão da cena do trono do capítulo 5 (v. 13-14). A transição do tempo de guerra para o tempo de paz e unidade é descrita em Apocalipse 20:11, quando toda a oposição no Céu e na Terra “fugiram” diante do grande trono branco. Em contraste com isso, está Apocalipse 13:2, onde a Besta do Mar recebe do dragão poder, “trono” e grande autoridade. Assim, embora “trono” não seja tão central em Apocalipse 12 e 13 como é nos capítulos 4 e 5, ele é mencionado em pontos cruciais na narrativa dos capítulos 12 e 13 para garantir que não seja esquecido pelo leitor. A cena da corte celestial de Apocalipse 4–5 é o contexto necessário para a guerra no Céu de 12:7-10.

Apocalipse 12:11

“Eles o venceram pelo sangue do Cordeiro e pela palavra do testemunho que deram; diante da morte, não amaram a própria vida.”

Esse verso-chave está aproximadamente na metade do livro de Apocalipse (Apocalipse 12:10-12).

No Apocalipse, todas as promessas são oferecidas àqueles que vencem, e esse verso contém a chave para a vitória. O crente vence mediante três coisas: o sangue do Cordeiro; a palavra do seu testemunho; e um estado de espírito que preferiria morrer a pecar (veja também Apocalipse 2:10). Os vencedores abririam mão da própria vida antes de abandonar seu relacionamento com Jesus. Em outras palavras, a autoridade do crente para vencer está baseada no testemunho sobre a cruz de Cristo. A cruz é o fundamento da vitória de Cristo sobre Satanás e de nossa vitória em Cristo. Esse verso, no contexto de 12:10, 12, é uma das declarações teológicas mais profundas de todo o livro de Apocalipse.

Algo para se pensar. Vivemos numa época da história em que a maioria dos seguidores de Jesus não precisa se preocupar em morrer por sua fé. Então, um texto como este talvez não faça sentido para muitos. Mas, por trás do que estamos estudando, existe uma verdade essencial independente da nossa situação pessoal. Se uma fé não é digna de nossa morte, tampouco é digna de nossa vida. A fé dos mártires nos mostra que uma vida sem Cristo não é uma vida digna de ser vivida. É melhor morrer do que ser obrigado a viver sem Cristo. Esse é o tipo de fé que nos sustentará através de qualquer situação. Esse é o tipo de fé que o Apocalipse pretende gerar.

Esse verso, em seu contexto, mostra claramente que o grande tema do Apocalipse não é a história militar ou política, mas o grande conflito sobre o caráter de Deus. Quando aprendemos a confiar em Deus (afinal, é isso o que a palavra “fé” significa), não apenas recebemos a salvação, mas confirmamos o tipo de Deus que governa o universo de maneira justa. Essa confirmação é a chave para o desfecho do conflito (veja também Apocalipse 15:3-4).

Apocalipse 12:10-11 – resumo

Em que sentido Satanás foi expulso na cruz (como acusador dos irmãos)? As acusações de Satanás contra Jó eram, em realidade, acusações contra Deus (“As pessoas Te servem só porque Tu manipulas o resultado”). Satanás trouxe essas acusações contra Deus para a Terra no Jardim (Gênesis 3:1-6). Essas acusações foram lançadas de maneira adicional por meio dos líderes religiosos que acusaram Jesus em Seu julgamento e na cruz. Mas elas foram plenamente refutadas na cruz. Lá, o verdadeiro caráter de Satanás foi revelado – ele foi um mentiroso e assassino desde o princípio (João 8:44), mas isso jamais foi visto tão claramente do que quando incitou os líderes religiosos a enviar Cristo à cruz.

O quadro mais amplo por trás desses versos é que o pecado lançou o universo numa turbulência por causa das acusações de Satanás contra Deus. De acordo com Satanás, Deus é injusto, porque Ele dá às pessoas leis que elas não podem guardar, força ou manipula as pessoas a servirem-nO etc. Obviamente, o Deus da Bíblia é suficientemente poderoso para assumir o controle o universo em qualquer momento, mas essa não é a maneira que Ele atua. Em vez disso, Ele pacientemente concede a Satanás tempo para manifestar o seu caráter para que a verdade sobre o caráter de Deus se torne claro a todos. A “guerra no Céu” não era o desejo de Deus, mas Ele permitiu o conflito como uma revelação tanto do Seu caráter como do de Satanás.

Deus poderia dar fim ao problema do pecado em qualquer momento, por meio da força.

Mas, se Ele fizesse isso, os habitantes do universo O serviriam com base no medo. Em vez disso, Ele permite que as coisas se desenrolem de modo que, um dia, a aclamação do universo será dada espontaneamente (Apocalipse 5:9-14). O que ocorreu na cruz conquista o coração de todos os que a compreendem e leva o universo inteiro a adorar a Deus e ao Cordeiro, que está assentado com Deus no trono.

No livro O desejado de todas as nações, Ellen G. White apresenta reflexões muito interessantes sobre o assunto. Ela diz: “Os principados e os poderes das trevas estavam reunidos em torno da cruz, lançando no coração dos homens a diabólica sombra de incredulidade. […] Aqueles que zombavam de Cristo, enquanto Ele pendia da cruz, estavam possuídos do espírito do primeiro grande rebelde. Ele os enchia de vis e aborrecíveis palavras. Inspirava suas zombarias. Com tudo isso, porém, nada ganhou.

‘Houvesse-se podido achar um só pecado em Cristo, tivesse Ele num particular que fosse cedido a Satanás para escapar à horrível tortura, e o inimigo de Deus e do homem teria triunfado. Cristo inclinou a cabeça e expirou, mas manteve firme a Sua fé em Deus, e a Sua submissão a Ele’. ‘Então, ouvi grande voz do céu, proclamando: Agora, veio a salvação, o poder, o reino do nosso Deus e a autoridade do Seu Cristo, pois foi expulso o acusador de nossos irmãos, o mesmo que os acusa de dia e de noite, diante do nosso Deus’ (Apocalipse 12:10).

“Satanás viu que estava desmascarado. Sua administração foi exposta perante os anjos não caídos e o universo celestial. Revelara-se um homicida. Derramando o sangue do Filho de Deus, Satanás desarraigou-se das simpatias dos seres celestiais. Daí em diante sua obra seria restrita. Qualquer que fosse a atitude que tomasse, não mais poderia esperar os anjos ao virem das cortes celestiais, nem perante eles acusar os irmãos de Cristo de terem vestes de trevas e contaminação de pecado. Os últimos laços de simpatia entre Satanás e o mundo celestial estavam rompidos.

“Todavia, Satanás não foi destruído naquele momento. Os anjos não perceberam, nem mesmo aí, tudo o que estava envolvido no grande conflito. Os princípios em jogo deveriam ser mais plenamente revelados. E, por amor ao ser humano, a existência de Satanás deveria continuar. Tanto o homem como os anjos deveriam ver o contraste entre o Príncipe da luz e o das trevas. Eles tinham que escolher a quem servir” (p. 760-761).

A Bíblia contém uma ilustração humana do contraste entre poder e direito em solucionar problemas de governo. O rei Dario, da Pérsia, foi obrigado pela lei a enviar seu melhor amigo, Daniel, para a cova dos leões (Daniel 6). Ele andou para lá e para cá, conversou com advogados e estudou livros de direito tentando encontrar uma saída. Ele era o rei e tinha poder suficiente para fazer tudo o que queria. Então, por que não ignorou sua lei e resgatou Daniel? Porque, se ele quebrasse as leis de seu reino, sua autoridade estaria destruída.

Assim, para Dario, essa não era uma questão de poder, mas uma questão muito mais ampla – de estar certo.

Muitos defendem o lema: “O poder faz o certo”, mas, com Deus, “o certo faz o poder”. Deus não escolhe forçar ninguém a servi-Lo ou a crer nEle. Ele respeita a liberdade de Suas criaturas, e deseja que o amor deles seria dado espontaneamente. A questão no conflito celestial não é sobre quem é poderoso, mas quem está certo. Na cruz, ficou claro para os seres celestiais que Deus não apenas está certo, mas tem o direito de governar.

A entronização de Jesus Cristo no Céu ocorreu em 31 d.C., mas, em sentido real, ela ainda não ocorreu na Terra. Muitos habitantes da Terra ainda creem nas mentiras de Satanás sobre Deus. Eles não compreendem que a cruz verdadeiramente garantiu tudo o que de fato importa. Deus deixou o esclarecimento dessas questões para aqueles que seguem a Cristo. É a pregação do Evangelho que exalta a cruz, de modo que o significado dela seja visto claramente. Quando o caráter de Deus for revelado claramente na Terra, as pessoas responderão da forma que os seres celestiais já responderam. Tanto o livro de Apocalipse como a experiência mostram que a proclamação do Evangelho sem dúvida é um trabalho em andamento.

Apocalipse 12:12

“Portanto, celebrem-no, ó céus, e os que neles habitam! Mas, ai da terra e do mar, pois o Diabo desceu até vocês! Ele está cheio de fúria, pois sabe que lhe resta pouco tempo.”

Ai da terra e do mar

“Terra e mar”, quando mencionados como um par, é uma das formas que os antigos usavam para descrever a Terra inteira. Nesse verso, “terra e mar” expressa a natureza universal das intenções do dragão. Essa expressão prepara o cenário para Apocalipse 13, em que os aliados do dragão sobem do mar e da terra. Posteriormente, neste capítulo (12:16), porém, a terra assume um papel mais positivo, ajudando a mulher a fugir do ataque inundante do dragão. O dragão é humilhado por sua destituição do Céu (12:9-10). Como a maioria dos valentões, ele se vinga naqueles que parecem mais fracos e vulneráveis.

Celebrem-no, ó céus

O Céu se alegra porque o dragão se foi, para nunca mais ameaçar ou acusar. Agora, a terra e o mar têm sua atenção exclusiva. A derrota de Satanás foi garantida na cruz, mas ele ainda tenta atacar Cristo torturando o Seu povo. Existe uma dicotomia interessante nesse texto.

Por um lado, com a cruz no passado, os crentes nunca foram tão fortes. Eles possuem as ferramentas para vencer o dragão por meio do sangue do Cordeiro e da palavra do seu testemunho (Apocalipse 12:11). Por outro lado, eles nunca foram tão vulneráveis quanto agora, que têm a atenção integral de Satanás. Ele está irado porque perdeu a batalha decisiva, e agora sabe que seu fim é apenas uma questão de tempo (12:12, 17).

Para explicar esse tema, com frequência os estudiosos do Novo Testamento usam uma ilustração extraída da Segunda Guerra Mundial. Após a derrota nazista em Stalingrado, no norte da África e na Normandia, a derrota final deles estava garantida, mas não pararam de lutar. Alguns dos momentos mais brutais da guerra ocorreram nos dois últimos anos, depois que o resultado já havia sido definido. Da mesma forma, os cristãos são estimulados a tomar posse do poder disponível na cruz, sabendo que a derrota final parece mais provável quando eles tiram os olhos da visão do Apocalipse.

Apocalipse 12:7-12 – resumo

Nessa passagem, eclode uma guerra no Céu. Mas que espécie de guerra é essa? É travada com jatos e mísseis, tanques e rifles AK-47? Esse é o tipo de linguagem empregada (especialmente nos v. 7-9). Mas que tipo de armas são usadas no capítulo 12? Aqui, a linguagem militar é claramente metafórica. A guerra no Céu é uma guerra de palavras, não uma guerra centrada em atacar pessoas fisicamente.

Em primeiro lugar, o verso 4 se refere à “cauda” do dragão, arrastando do Céu um terço das estrelas. Em Isaías 9:15, a cauda representa os profetas que dizem mentiras. Portanto, a cauda de Apocalipse 12:4 representa palavras enganadoras que convencem muitos anjos a seguirem Satanás quando ele é expulso do Céu.

Então, no verso 9, o dragão é definido como “a antiga serpente”. Isso remete a Gênesis 3 e à “batalha” entre a serpente e a mulher (Eva), que foi uma “guerra” de palavras: a serpente dizendo mentiras sobre Deus e a mulher, no fim, crendo nelas e agindo com base nelas.

O verso 10 deixa claro que Satanás está sendo expulso não como um general à frente do exército, mas como o acusador dos “irmãos”. Novamente, a arma escolhida são as palavras.

A linguagem e o papel aqui recordam Jó 1 e 2 e também Zacarias 3, em que Satanás acusa os crentes e, por implicação, o próprio Deus.

Aqueles que resistem a Satanás, nessa passagem, o fazem pela “palavra do testemunho que deram” (12:11). As evidências cumulativas que resumimos aponta para uma batalha de palavras sobre o caráter de Deus e sobre quem tem o direito de governar o universo. O verso 10 remete ao capítulo 5 e à aclamação do Cordeiro por causa da cruz (veja também 12:11). Assim, a guerra no Céu é travada com palavras e diz respeito às alegações de Satanás, ao caráter de Deus e ao Seu direito de governar o universo. Por suas ações durante o conflito, os respectivos caracteres de Deus e de Satanás se tornam claros ao universo expectante.

Apocalipse 12:7-12 – lições espirituais

1 – Algo aconteceu na cruz que conquista o coração de todos os que a compreendem, o extraordinário sacrifício feito por Deus para conquistar nosso coração para Ele. O significado da cruz foi compreendido no Céu naquele momento. As acusações de Satanás não têm mais efeito lá. Mas, na Terra, ainda não é assim. A grande e final proclamação do Evangelho (Apocalipse14:6-7) deve avançar a fim de que o sacrifício de Cristo na cruz seja compreendido mais claramente aqui na Terra.

2 – Satanás é o acusador dos irmãos. Os pecados do povo de Deus todos os argumentos que ele precisa diante do trono de Deus e também dentro do nosso coração. No entanto, o dom gratuito do Evangelho, a justiça de Cristo, não apenas nos livra do fardo do pecado, mas também das acusações de Satanás em nosso coração, a menos que permitamos o contrário.

A liberdade do Evangelho inclui livramento do senso de acusação e de condenação.

Uma consequência disso é que, quando acusamos uns aos outros, estamos fazendo a obra de Satanás, indo para o lado dele no conflito, em vez do lado do Senhor. Nesse contexto, acredito que é relevante lembrar de Tiago 2:13. No juízo, somos tratados da maneira que tratamos os outros. Em certo sentido, definimos nosso próprio padrão de julgamento.

Quem julga os outros severamente costuma ser mais severo consigo mesmo. O Evangelho nos liberta tanto das acusações contra nós como das acusações que tendemos a lançar sobre os outros. As duas coisas estão relacionadas.

3 – Ao questionar o papel de Deus, Satanás também questiona as leis que alicerçam o governo de Deus. Assim, não é de surpreender que os mandamentos de Deus são uma importante ênfase no contexto dessa passagem (veja nota sobre Apocalipse 11:19). No contexto imediato, existem referências à arca da aliança (11:19), aos “mandamentos de Deus” (12:17; 14:12), à primeira tábua do Decálogo (Apocalipse 13) e ao mandamento do sábado (14:7). Embora a linguagem da metáfora e da analogia sem dúvida esteja presente em alguns desses textos, todos os sistemas de governo que conhecemos (com exceção de ditaduras arbitrárias e absolutas, que são raras) operam com base em leis e julgamentos. Assim, os ataques verbais de Satanás contra o governo de Deus implicam em questionamentos sobre a validade e a imparcialidade das leis de Deus como parte desse governo. As leis de Deus são uma expressão do Seu caráter, de modo que, questionando o caráter de Deus, Satanás também questiona a Sua lei. Por isso, uma característica daqueles que vindicarão o caráter de Deus aqui na Terra é que eles manifestarão um espírito de obediência a Deus, incluindo obediência ao “espírito” bem como à “letra” dos mandamentos divinos. Qualquer insinuação de que a obediência a algum mandamento é irrelevante para os cristãos é contrária ao lado de Deus no conflito cósmico. Sobre esse tema, recomendo fortemente o livro de Sigve K. Tonstad, The Lost Meaning of the Seventh Day (Berrien Springs, MI: Andrews University Press, 2009).

Apocalipse 12:13

“Quando o dragão foi lançado à Terra, começou a perseguir a mulher que dera à luz omenino.”

Aqui existe um paralelo ao momento em que Satanás tentou devorar o filho (Apocalipse 12:4). Essa tentativa desencadeou um interlúdio no Céu (v. 7-12). Agora retornamos à história do verso 6, com Satanás de volta à Terra, mas agora ele não está mais perseguindo o filho, que foi arrebatado ao Céu, mas perseguindo a mulher até o deserto. Esse é um novo detalhe na história. No verso 6, é mencionada a fuga da mulher, mas não a perseguição do dragão. Essa perseguição agora se torna o elemento central da história nos versos seguintes (v. 14-16).

Pelo fato de que Satanás não pode tocar em Cristo (que está no Céu), ele desconta sua ira contra a igreja na Terra.

Apocalipse 12:14

“Foram dadas à mulher as duas asas da grande águia, para que ela pudesse voar para o lugar que lhe havia sido preparado no deserto, onde seria sustentada durante um tempo, tempos e meio tempo, fora do alcance da serpente.”

Ela pudesse voar para […] o deserto

Veja os comentários do verso 6, que é um paralelo bastante próximo. Nos tempos antigos, o povo de Israel havia fugido para o deserto a fim de escapar dos egípcios. Esse foi um lugar de provação e teste, mas também um meio de escapar da escravidão. Ser carregado pelas “duas asas da grande águia” torna essa uma repetição da experiência do Êxodo (Êxodo 19:4; veja também Deuteronômio 32:11-12; Isaías 40:31). O lugar deserto é especialmente preparado por Deus para a mulher.

O Apocalipse retrata um Deus que nunca é tomado por surpresa, independentemente das circunstâncias. Embora a perseguição e o sofrimento sejam a porção comum dos que creem, Deus põe limites no poder do inimigo. Ainda que não haja uma alusão direta às cartas aos coríntios nesse verso, 1 Coríntios 10:1-13 também usa o Êxodo para estabelecer um argumento. Então, é possível que Apocalipse 12:14 recordava os leitores originais de 1 Coríntios 10:13. Nenhuma tentação pode vir aos crentes que seja maior do que podem suportar. Deus sempre providencia um “escape”. E isso é exatamente o que acontece em Apocalipse 12:14.

Assim, o tema básico desse verso é que Deus cuida da mulher nessa história como Ele cuidou dos israelitas no deserto. Ele lhe providencia alimento e abrigo como fez com Israel durante o Êxodo.

As duas asas da grande águia

É interessante que os tradutores têm dificuldade com a expressão “as asas da grande águia”. O texto grego realmente usa o artigo definido em relação à águia. Sendo que não existe nenhuma referência anterior a essa águia no próprio livro de Apocalipse (a “águia de 8:13 é mais semelhante a um abutre, e o termo grego pode ser traduzido das duas formas), praticamente todas as traduções em inglês, inclusive a King James, usam a forma indefinida.

(Em português, a maioria das traduções usa o artigo definido, incluindo a Nova Versão Internacional, a Almeida Revista e Atualizada e a Bíblia de Jerusalém.) A melhor explicação que encontrei até hoje é que o artigo definido é um indicador para as asas da águia específica mencionada na história do Êxodo (Êxodo 19:4). Um artigo indefinido enfraqueceria a ligação desse verso com o Êxodo. Assim, embora o artigo definido seja uma tradução estranha (pelo menos em inglês), ele foi proposital da parte de João, transmitindo uma conotação que atrairia a atenção do leitor para aquela cena.

Um tempo, tempos e meio tempo

Nesse verso é dito que a mulher seria sustentada no deserto durante “um tempo, tempos e metade de um tempo” (ARA). No texto paralelo, o período de tempo é descrito como 1.260 dias. Assim, os dois períodos de tempo parecem ser o mesmo. Se a palavra “tempo” se refere a um ano, seria um ano, dois anos e metade de um ano, que é aproximadamente 1.260 dias. Esse raciocínio é confirmado em 13:5, em que o período de tempo é descrito como 42 meses. Portanto, 1.260 dias, 42 meses e “um tempo, tempos e metade de um tempo” (ARA) são três maneiras de descrever o mesmo período histórico. Veja também os comentários sobre o verso 6. Esse período de tempo deve ser considerado literalmente ou é, de alguma forma, simbólico? Veja os comentários sobre Apocalipse 1:1 para razões que favorecem uma interpretação simbólica.

Um uso simbólico possível seria ligar esse período de tempo com o ministério terreno de Jesus. No evangelho de João, se a festa não identificada no capítulo 5:1 for a Páscoa, houve quatro Páscoas ao longo do ministério público de Jesus, que duraria cerca de três anos e meio.

O uso da expressão “um tempo, tempos e metade de um tempo” é uma clara alusão ao livro de Daniel, onde a sentença é usada duas vezes (Daniel 7:25; 12:7). A alusão a Daniel 7 também é apoiada pelas sete cabeças e dez chifres do dragão. Veja os comentários sobre Apocalipse 12:3. Em Daniel 7, o “tempo, tempos e metade de um tempo” se refere a um período no qual o “chifre pequeno” oprimiria os “santos”. Em Daniel 12, é um período no qual o “poder do povo santo” seria “quebrado” ou destruído. Assim, o sentido básico da expressão em Daniel diz respeito a um período de tempo em que o povo de Deus (os “santos”) sofreria grandemente por poderes ou instituições terrestres.

Embora Apocalipse 12:7-12 não faça alguma alusão verbal a Daniel 7:9-14 (até onde eu e outros comentaristas temos pesquisado), as várias referências a outras partes de Daniel 7 e o fato de que as duas passagens descrevem atividades no concílio celestial indicam que o leitor deveria manter Daniel 7:9-14 em mente ao ler Apocalipse 12:7-12. Em Daniel 7:9-14, há uma cena de julgamento no tribunal celestial. Livros são abertos e os poderes do mal são julgados. Há também uma cena na qual o “filho do homem” é exaltado a grande poder e autoridade. Assim, a entronização do Cordeiro no capítulo 7, que é mencionada novamente em 12:10, recorda elementos da visão do trono celestial de Daniel 7.

Nesse contexto, é interessante notar que todos os grandes hinos do Apocalipse ocorrem na sala do concílio celestial. Apocalipse 4:8-11 e 5:9-14 estão associados com a entronização do Cordeiro e aludem à cena de Daniel 7:9-14. Apocalipse 7:9-12 também ocorre diante do trono (veja v. 15-17). De modo semelhante, Apocalipse 11:15-18; 12:7-12; 15:1-4 e 19:1-8 situam os hinos no contexto da sala do concílio celestial. Assim, o leitor deve estar ciente de que todas as cenas relacionadas ao concílio celestial têm conotação de governo divino, juízo e vitória final de Deus sobre o mal.

Sendo que, nesse verso, há uma clara alusão a Daniel 7:25 (“tempo, tempos e metade de um tempo”), quero explorar algumas das implicações históricas de Daniel 7 nesse contexto.

Em Daniel 7, há quatro bestas selvagens ou carnívoras (três são semelhantes ao que existe na natureza), que representam quatro “reis” ou reinos que dominariam a história a partir da época de Daniel (Daniel 7:17). Os primeiros pais da igreja identificaram esses quatro reinos como Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma, que dominaram o Oriente Próximo e a bacia do Mediterrâneo do 6º século a.C. até o 5º século d.C. Alguns séculos antes do evento, esses autores cristãos previram que a queda de Roma como poder político daria lugar ao anticristo.

De acordo com Daniel 7:24, a quarta besta (Roma) seria dividida e seguida por dez reis (representados pelos dez chifres da quarta besta, os dez chifres são contemporâneos, não consecutivos). Os dez reis seriam seguidos por outro rei de espécie diferente (representado por um novo chifre, inicialmente pequeno, segundo Daniel 7:8), que sujeitaria três dos dez (arrancaria os chifres da cabeça da besta, Daniel 7:8). Esse rei de espécie diferente falaria “com arrogância” (v. 8) “contra o Altíssimo” (v. 25), oprimiria os “santos” e tentaria mudar “os tempos e a lei” (v. 25, ARA). Isso soa como um poder com um enfoque religioso mais direto que os anteriores, que estavam interessados em domínio terrestre em vez de celestial.

“Tempo, tempos e metade de um tempo” é o período em que esse poder fala, atua e oprime os santos.

Os pioneiros adventistas, junto com a maioria dos intérpretes até o século 19, compreendiam a quarta besta como o Império Romano pagão, os dez chifres como os poderes nos quais o império foi dividido quando ruiu no século 5º, e o chifre pequeno como o papado, que se tornou a força política dominante tanto na área política como na religiosa na Europa e no mundo mediterrâneo durante mais de mil anos. Esses intérpretes compreendiam “tempo, tempos e metade de um tempo” como um período de 1.260 anos durante o qual o papado teve seu papel dominante, ou seja, entre 538 e 1798.

Aproximadamente de 800 d.C. até a metade do século 19, a maioria dos intérpretes cristãos do Apocalipse compreendia os 1.260 dias de Daniel e Apocalipse em termos do “princípio dia-ano”. Esse princípio foi aplicado aos livros de Daniel e Apocalipse pela primeira vez em torno de 800 d.C. pelo erudito judeu-persa Nahawendi. Segundo o princípio dia-ano, na profecia apocalíptica bíblica, sempre que um período é descrito em dias, seu cumprimento é contado em anos. Em outras palavras, os 1.260 dias de Apocalipse 11–13 devem ser interpretados como 1.260 anos. Sendo que esse princípio tem sido amplamente abandonado pelos estudiosos de Daniel e Apocalipse desde a década de 1840, vamos avaliar as evidências a favor e contra o princípio dia-ano antes de continuar o comentário de Apocalipse 12.

Excurso: O princípio dia-ano

Em poucas palavras, o “princípio dia-ano” diz o seguinte: “Na profecia apocalíptica bíblica, sempre que um período é descrito em dias, seu cumprimento é contado em anos”. O problema imediato com essa afirmação é que ela não se encontra em parte nenhuma da Bíblia. Os dois melhores candidatos, Números 14:34 e Ezequiel 4:6, não tratam da profecia bíblica, nem apresentam um princípio consistente que possa ser aplicado a outras situações.

De fato, elas vão em direções opostas: Números aplica a penalidade de um ano para cada dia da rebelião de Israel, enquanto Ezequiel sofre um dia para cada ano da rebelião de Israel. Assim, em nível exegético (o que o texto bíblico realmente diz), o princípio não é enunciado em nenhum lugar da Bíblia.

No entanto, se nos limitarmos ao que o texto bíblico realmente diz, não creríamos em muitas coisas que cremos, e a Bíblia teria pouco a dizer a um mundo da internet. Com frequência, extraímos princípios teológicos de textos bíblicos que se aplicam de maneira diferente em contextos antigos. Por exemplo, a Bíblia não faz uma declaração direta sobre a “Trindade” (tampouco a palavra é usada na Bíblia), mas a maioria dos cristãos acredita que essa doutrina se baseia numa abordagem teológica das Escrituras. (Para um estudo sobre a diferença entre exegese e teologia sistemática, veja meu livro The Deep Things of God: An Insider’s Guide to the Book of Revelation [Hagerstown, MD: Review and Herald, 2004].) De modo semelhante, o “princípio dia-ano” não se baseia numa declaração direta da Bíblia (exegese), mas em princípios mais amplos extraídos da Bíblia e desenvolvidos pela história, pela filosofia e pela experiência.

Duas convicções teológicas

Os intérpretes adventistas do sétimo dia não baseiam o princípio dia-ano em declarações diretas, exegéticas da Bíblia, mas em duas convicções teológicas em nível sistemático (que considera evidências bíblicas mais amplas, bem como as evidências de fora das Escrituras, como a ciência, a história e a experiência).

A primeira convicção é que Deus conhece o futuro e comunica esse conhecimento com os profetas bíblicos. O que exatamente Deus conhece sobre o futuro e a maneira como Ele conhece é bastante debatido entre os teólogos atualmente, e são oferecidas muitas opções.

Mas os pioneiros adventistas estavam comprometidos com a ideia de que o futuro pode ser conhecido por meio da profecia bíblica (embora existam limitações humanas sobre esse conhecimento – 1Coríntios 13:9), porque ele é conhecido por um Deus que revela a Si mesmo.

A segunda convicção é que, na profecia apocalíptica, o futuro é revelado como uma sequência abrangente de eventos históricos que se estendem da época do profeta até o fim dos tempos. Mais uma vez, a validade dessa afirmação é debatida entre os estudiosos da Bíblia atualmente e deve ser analisada de maneira mais profunda, mas os pioneiros adventistas estavam comprometidos com essa visão, que lançou o fundamento para uma compreensão sobre as profecias que veio a incluir o princípio dia-ano.

Como veremos, ambas as convicções são essenciais para a validade do princípio dia-ano. E embora existam estudiosos que estão corretamente empenhados em questionar todas as premissas sobre Deus e as coisas espirituais, as duas convicções adventistas que mencionamos acima são coerentes com a cosmovisão dos autores bíblicos e da maioria dos intérpretes da Bíblia até o século 19. Por isso, os adventistas que continuam a sustentar essas duas convicções estão acompanhados de um grande número de pessoas ao longo da história.

Como vimos, a compreensão adventista do princípio dia-ano não está fundamentada numa declaração bíblica direta, mas em duas convicções teológicas em nível sistemático: 1) Deus conhece o futuro e o revela aos Seus profetas; 2) a profecia apocalíptica é a predição de uma sequência abrangente de eventos históricos. Os adventistas do sétimo dia não estudam Daniel e Apocalipse de maneira exegética (o que o texto significava em seu contexto original), mas com a perspectiva do tempo passado. Uma leitura adventista do Apocalipse não está limitada à exegese, mas considera a intenção divina mais profunda para o texto, que vai muito além do que o autor humano original seria capaz de pretender ou compreender. O significado expandido que vem com o passar do tempo e a consideração da história, da experiência, da ciência etc., não contradizem a intenção original do autor, mas são uma extensão natural desse significado. Em outras palavras, o propósito de Deus na produção de um texto bíblico usa as palavras e intenção originais do escritor humano para expressar significados expandidos que ficam evidentes no contexto das Escrituras como um todo e com o decorrer do texto e revelação adicional.

Antecedentes do mundo antigo

Assim, o princípio dia-ano não precisa ser compulsório no sentido exegético para ser verdadeiro. Mas também não deve contradizer o claro sentido do texto bíblico. O princípio dia-ano precisa ser exegeticamente defensável em vez de exegeticamente compulsório. Ser exegeticamente compulsório significa que o assunto é abordado de maneira tão clara e intencional em um texto bíblico que nenhuma mente honesta pode deixar de enxergá-lo.

Exegeticamente defensável significa que a interpretação pode ser defendida pelo menos como uma opção baseada na intenção original do autor. À luz de tudo isso, surge a pergunta: quais elementos exatamente são compulsórios sobre as profecias bíblicas de tempo? Uma coisa é clara: existe uma correspondência dia-ano, ou um “pensamento” dia-ano ao longo de toda a Bíblia e no mundo antigo. Em outras palavras, os antigos com frequência viam correspondências entre dias e anos. Entre os israelitas, por exemplo, havia o princípio sabático: o ciclo semanal, com seu sábado no sétimo dia, correspondia ao ciclo agrícola, em que seis anos de plantio e colheita eram seguidos por um sétimo ano, no qual a terra deveria descansar (Êxodo 23:10-12; Levítico 25:3-8; veja também Levítico 26:33-35; 2Crônicas 36:20-21).

De modo semelhante, fora da Bíblia, o Código de Hamurabi (1762 a.C.) descreve uma grande festa que celebrou o trigésimo ano do reinado de Hamurabi. A festa deveria durar 30 dias, um dia para cada ano de seu reinado. Esse não é um enunciado do princípio dia-ano, mas demonstra o pensamento ou correspondência dia-ano. Da mesma forma, em Números 14:34, é dito que os israelitas deveriam passar 40 anos no deserto, correspondendo aos 40 dias de sua rebelião contra Deus. Em Ezequiel 4:4-6, o profeta é ordenado a deitar-se de um lado durante 390 dias, um dia para cada ano da rebelião de Israel. Como já observamos, nenhum desses textos é uma declaração de como a profecia deve ser interpretada, mas ilustram claramente a correspondência dia-ano na Bíblia.

Defensores do princípio dia-ano com frequência apontam para Daniel 9 como um claro enunciado do princípio. No entanto, de uma perspectiva exegética, esse texto está longe de ser uma declaração universal. Parece-me que as 70 semanas de Daniel 9:24-27 pretendem ser compreendidas como anos porque são baseadas nos 70 anos de cativeiro na Babilônia (Daniel 9:2). Os 70 anos do cativeiro babilônico eram anos sabáticos (Levíticos 26:33-35; 2Crônicas 36:20-21), que representavam 420 anos de desobediência a Deus (aproximadamente o período da monarquia; veja 1Samuel 8:5-20). Assim, as 70 semanas de Daniel 9 oferecem a Israel um novo período de oportunidade, mais ou menos da mesma duração que o período de Saul (1050-1100 a.C.) a Ciro (539 a.C.).

Infelizmente, de uma perspectiva exegética, nenhum texto do Novo Testamento cita ou alude de maneira clara a Daniel 9 com o propósito de dizer que ele se cumpriu em Jesus. O Novo Testamento se refere a Daniel 9 ao falar sobre a “abominação da desolação” (Mateus 24:15; Marcos 13:14, ARA), mas não quanto ao significado de seus períodos de tempo. Ele também faz referências a tempo como: “O tempo está cumprido” (Marcos 1:15, ARA), mas não alude a Daniel 9 nesses pontos. Portanto, de uma perspectiva exegética, não temos confirmação bíblica absoluta de que os cristãos do primeiro século compreendiam Daniel 9 como uma profecia sobre o ministério e a morte de Cristo.

Contudo, ela ao menos oferece uma ilustração do pensamento dia-ano? Tudo depende do significado da palavra hebraica traduzida como “semanas” ou “setes”. Se Daniel 9:24-27 usasse a palavra hebraica comum para “semanas”, haveria a forte implicação de dias nessa terminologia. Assim, a “correspondência dia-ano” seria estabelecida. E a implicação de uma profecia expressa em dias, mas compreendida em anos, estaria muito perto de uma ilustração do princípio dia-ano, embora aquém de um enunciado. Infelizmente, para os defensores do princípio dia-ano, a palavra hebraica traduzida como “semanas” é outra, que não possui a especificação normal de “semanas de dias”. Ela é uma unidade mais geral de sete, cujo significado é determinado pelo contexto. Assim, quando Daniel usa o termo para descrever “semanas de dias” (Daniel 10:3), ele usa a expressão completa para diferenciá-las das semanas de anos do capítulo anterior (Daniel 9:24-27).

Em resumo, do ponto de vista exegético, é possível que Daniel 9 seja uma ilustração do pensamento dia-ano na antiguidade, mas as evidências estão aquém da certeza. Ao menos o uso da mesma palavra hebraica tanto para dias como para semanas (Daniel 9:24-27; 10:3) é consistente com o pensamento dia-ano.

Tendo dito isso, é possível vincular a profecias das 70 “semanas” de Daniel 9 com a visão das 2.300 tardes e manhãs de Daniel 8:13-14. À primeira vista, a profecia possa ser compreendida como 2.300 dias literais (2.300 combinações de uma tarde e uma manhã – linguagem extraída de Gênesis 1) ou como 1.150 dias literais (se o texto se referir a 2.300 sacrifícios diários), mas Daniel 8:26-27 indica uma interpretação simbólica que vai muito além da época de Daniel. Isso é apoiado pela comparação com Daniel 2 e 7, em que as visões se estendem dos dias do profeta até o fim dos tempos (Daniel 8 inicia com o período persa e presumivelmente vai até o tempo do fim ou próximo dele). Se é assim, uma leitura literal de “tardes e manhãs” não se encaixa. Se as 70 “semanas” de anos são “cortadas” (com base na palavra hebraica geralmente traduzida como “decretadas” em Daniel 9:24) do período de tempo maior da visão, haveria uma correspondência dia-ano implícita entre a visão de Daniel 8:13-14 e a de Daniel 9:24-27. Essa dedução, embora seja atrativa para os defensores do princípio dia-ano, se baseia em várias decisões sobre palavras e frases hebraicas obscuras, que estão longe de ser exegeticamente compulsórias. Mas são possibilidades.

Fora da Bíblia, a mais clara ilustração do princípio dia-ano é encontrada nos manuscritos do Mar Morto. A comunidade de Qumrã parece ter praticado algo semelhante ao princípio dia-ano, usando a linguagem de “semanas” para expressar períodos de tempo que sabemos que exigiam pelo menos sete anos para ocorrerem. Novamente, os manuscritos do Mar Morto em nenhum momento enunciam um princípio dia-ano, mas claramente apresentam uma correspondência ou pensamento dia-ano no mundo do Novo Testamento, assim como o Antigo Testamento faz por sua época.

O simbolismo do Apocalipse

Então, como chegamos a um “princípio dia-ano” se ele não é apresentado explicitamente no texto bíblico? No nível da teologia sistemática, que permite ao intérprete ver significados expandidos no texto bíblico à luz do fluxo da história, da experiência, da ciência, da filosofia e da revelação posterior.

Para começar, a linguagem do Apocalipse (assim como das porções apocalípticas de Daniel) é claramente simbólica. Isso é afirmado explicitamente pelo uso da palavra “significou” (em grego, esêmanen; a Bíblia de Jerusalém traduz corretamente como “manifestou com sinais”). Se a linguagem é amplamente simbólica (há exceções óbvias, como “Jesus” (Apocalipse 12:17; 14:12; 17:6), então os números do livro também são amplamente simbólicos. O princípio dia-ano sem dúvida usa números de forma simbólica: “Um dia em períodos de tempo apocalípticos representam um ano”.

Um segundo indício para a aplicação do princípio dia-ano é o uso de número incomuns.

Nenhum princípio doutrinário está fundamentado no uso simbólico de “um dia”, “uma hora” ou “cinco meses”. As profecias de tempo cruciais de Daniel e Apocalipse usam números muito incomuns para indicar sua presença: “1.260 dias”; “42 meses” (quem diria que seu filho tem 42 meses? Geralmente diríamos “três anos e meio”); “tempo, tempos e meio metade de um tempo” (tente essa com um de seus amigos!); “2.300 tardes e manhãs”. Os elementos-chave de tempo na interpretação profética são números muito estranhos.

A única exceção dessa regra é Apocalipse 9:15, em que “a hora, o dia, o mês e o ano” (ARA) têm sido aplicados a 391 anos da história do Império Otomano. Mas, no texto grego, essa expressão na verdade descreve um momento no tempo, e não uma série de períodos de tempo. Portanto, nesse caso, a aplicação do princípio dia-ano parece se basear mais em uma tradução equivocada do texto grego do que na intenção original do autor.

Em Daniel e Apocalipse, existem vários números incomuns que expressam períodos de tempo. Sugiro que esses períodos de tempo fazem muito mais sentido hoje quando interpretados como anos. Em Daniel 7, por exemplo, se usarmos uma compreensão historicista, como a maioria dos adventistas fazem, cada besta representa um império que durou centenas de anos (ou pouco menos de um século, no caso de Babilônia). Depois dos quatro impérios, surge em cena um império que é mais feroz e assustador que todos os outros, sendo claramente o clímax da história. E ele domina durante apenas três anos e meio?! Se, no capítulo, o chifre pequeno é o supremo oponente dos planos de Deus, interpretar “tempo, tempos e metade de um tempo” como 1.260 anos se encaixa muito bem na perspectiva de todo o capítulo. O tempo do chifre pequeno é proporcional ao reinado dos impérios anteriores (ao menos como visto com a passagem do tempo na história).

Mais do que isso, cada profecia de tempo (Daniel 2, Daniel 7 e Apocalipse 12 são bastante claras neste aspecto) se estende da época do profeta até o último período da história da Terra. Se compreendermos essas profecias de maneira histórica, os 1.260 dias precisam ser anos, porque, de outro modo, haveria uma enorme lacuna entre o Império Romano e a nossa época. O princípio dia-ano permite que as principais profecias de Daniel e Apocalipse formem uma sequência completa que vai do tempo do profeta ao fim dos tempos. Mas interpretá-los de maneira literal torna isso impossível. Ler as profecias através das lentes da história possui seus desafios, mas os resultados fazem todo o sentido quando analisados à luz do todo.

Atos de Deus na história

Em resumo, o “princípio dia-ano” não se baseia em declarações diretas da Bíblia, mas na perspectiva mais ampla da teologia sistemática. Nessa perspectiva mais ampla, a passagem dos séculos nos ajuda a ver aspectos do texto que não seriam visíveis quando os textos foram escritos. E, para os adventistas, esses aspectos são confirmados pelas visões de Ellen G. White. No entanto, este excurso argumenta que o princípio não exige o apoio de Ellen G. White para ser aceito no nível da teologia sistemática. De fato, ele tem sido aceito durante séculos pela maioria dos cristãos, e até por alguns judeus como Nahawendi, como a maneira correta de compreender o texto.

Aplicar o princípio dia-ano aos escritos de João no primeiro século não teria feito nenhum sentido. Apocalipse 1:1 diz que o livro trata de “coisas que em breve devem acontecer” (ARA), e o verso 3 acrescenta que “o tempo está próximo”. A clara expectativa da segunda vinda de Cristo levaria os leitores originais a não ver a relevância dia-ano nos períodos de tempo do Apocalipse. Foi apenas com o passar de oito séculos que Nahawendi, e depois dele Joaquim de Fiori, começaram a considerar a possibilidade de que as profecias de Daniel e Apocalipse só fariam completo sentido de modo histórico quando interpretadas à luz da passagem dos séculos. Assim, o princípio dia-ano não era um conceito que poderia ser afirmado de maneira exegética nos tempos bíblicos (ou de maneira compulsória no primeiro século), mas poderia apenas ser extraída dos textos de Daniel e Apocalipse depois da passagem de vários séculos.

Quando aceitamos o princípio dia-ano (em nível teológico), podemos ver como a mão de Deus é capaz de tomar a língua, a época e a perspectiva de um escritor humano como João, fazer perfeito sentido naquele tempo e lugar, mas plantar sementes no texto que brotariam só com o passar de vários séculos. Compreender as profecias de tempo de Daniel e Apocalipse segundo o princípio dia-ano não precisa fazer sentido exegeticamente, mas uma interpretação fiel exige que ela seja coerente com um estudo exegético do texto. O significado estendido deve ser uma extensão natural da intenção do autor humano original.

Assim, a intenção de Deus para o texto está fundamentada na intenção do autor humano, ainda que ela conduza o intérprete a lugares que o escritor original não conseguiria ir.

Historicamente, observando a história cristã, houve um período de 1.260 anos quando a Bíblia e o verdadeiro Israel estavam na obscuridade e, além disso, um grande poder religioso/político os perseguia? Em termos de anos, houve apenas um tempo – a Idade Média (houve aproximadamente 1.260 anos do século 6º até a Revolução Francesa).

Durante esse período, a Bíblia com frequência esteve na obscuridade, e aqueles que seguiam os ensinamentos bíblicos com frequência eram perseguidos. Dizer isso não equivale a preconceito anticatólico, mas é simplesmente observar a realidade da história várias vezes expressada por santos medievais (como Bernardo de Claraval, Eberhardt de Salzburgo e Francisco de Assis). Eles tinham várias coisas a dizer sobre a liderança da igreja medieval, especialmente sobre como ela estava mais interessada em lucro econômico e poder político do que em espiritualidade. Mas Deus nunca é surpreendido. E, se nós compreendemos Apocalipse 12 corretamente, Ele previu que a igreja se tornaria um poder opressor e que o Seu verdadeiro povo às vezes teria que se afastar da sociedade e se esconder no “deserto”.

Cumprimento dos 1.260 anos

Não sou especialista em história medieval, mas não é difícil enxergar o quadro mais amplo dos 1.260 anos. Embora o surgimento e a queda do poder papal na Europa não se limitem a datas específicas, os melhores “pontos críticos” provavelmente sejam 538 para o início e 1798 para o fim.

Pouco antes de 538, o papado começou a acumular poder político no oeste da Europa, enquanto o centro de gravidade do império se movia para o leste Constantinopla, no leste.

Mas, dentro da Itália, a ascensão política do papado foi dificultada até 476 pelos resquícios ocidentais do Império Romano; depois pelos hérulos, governados por Odoacro (até 1490-1493); e, então, pelo Reino Ostrogótico (1493-1553). Mas o domínio papal em Roma libertou-se do controle ostrogótico em 538.

Na outra extremidade (1798), o domínio político papal em grande medida chegou ao fim por meio de Berthier, general de Napoleão, que levou o papa em cativeiro e estabeleceu uma “república romana”. O papado reteve algum controle sobre os diminuídos Estados Papais até 1870, mas passou a ser um coadjuvante político na Europa após 1798.

Presumindo que Deus previu o reinado de terror medieval da igreja (já ouviu falar sobre as Cruzadas e a Inquisição?), surge a pergunta: por que Deus permitiu que o sistema papal vencesse a batalha pelo controle da igreja no período entre os imperadores Constantino (morreu em 337 d.C.) e Justiniano (morreu em 565 d.C.)? (Aqui estou em dívida com meu amigo Ed Dickerson.) Que bem poderia resultar disso?

Acredito que a razão pela qual Deus permitiu que o papado controlasse a igreja é que, apesar de todas as suas falhas, ele manteve a coisa mais importante. E qual é? O cânon dos 27 livros do Novo Testamento. Se você obtém o cânon correto, tudo o mais pode ser corrigido. Mas, sem o cânon do Novo Testamento como o temos, não haveria nenhuma Reforma Protestante e nenhum Reavivamento de Wesley. E não haveria nenhum movimento adventista do sétimo dia.

Nos primeiros séculos, havia cinco ou seis diferentes versões de cristianismo, todos baseados em aspectos do ensino do Novo Testamento, todos competindo para oferecer a melhor forma de cristianismo. Esses grupos eram os gnósticos, os monásticos, os montanistas, os marcionitas, os cristãos judeus e os cristãos ortodoxos (que viriam a se tornar o cristianismo predominante). Se qualquer uma das outras cinco versões de cristianismo se tornassem dominante, o Novo Testamento teria acabado de maneira muito diferente. Por exemplo, o cânon marcionita tinha porções de Lucas e dez cartas de Paulo. E isso era tudo. Os montanistas, por outro lado, acreditavam que todo cristão era tão inspirado quanto os apóstolos. Nesse caso, o cânon seria praticamente infinito.

Então, vemos Deus realizando Suas “ações de retaguarda”. Ele é muito prático. Com frequência, Ele aceita o menor entre dois ou três males como o melhor resultado prático da condição humana (não o melhor resultado imaginável). Você agradeceu recentemente um católico romano pelo cânon do Novo Testamento? As coisas teriam sido piores.

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Indicamos a leitura dos textos abaixo:

. Quem é o Arcanjo Miguel?

. Deus Criou os Anjos

. Trindade Satânica

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