A Justificação em Paulo e Tiago por George Knight

Nas cartas do apóstolo Paulo, a doutrina da justificação é o maravilhoso ensino bíblico de que Deus nos aceita como justos em Cristo e perdoa nossos pecados quando nós o recebemos pela fé somente. O Catecismo Menor de Westminster afirma esse ensino de forma muito sucinta e acurada quando diz: “A justificação é um ato da livre graça de Deus, em que Ele perdoa nossos pecados, e nos aceita como justos perante Si, apenas por causa da justiça de Cristo imputada a nós, e recebida pela fé somente” (Q. 33).


O Ensino de Paulo

O apóstolo Paulo refuta aqueles que erroneamente pensam que Deus salva as pessoas levando em consideração as boas coisas que elas mesmas fazem, além de sua fé. Ele faz isso repetidas vezes: Romanos 3:20-22 — “Visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos [e sobre todos] os que crêem”. Paulo diz que a justiça nos vem do próprio Deus, independentemente de guardar a lei, e vem somente àqueles que crêem em Jesus Cristo.

Romanos 3:28 — “Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé, independentemente das obras da lei”. O apóstolo reafirma que alguém é justificado independentemente das obras da lei.

Romanos 4:3-5 — “Pois, que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça. Ora, ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e, sim, como dívida. Mas ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica ao ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça”. O apóstolo afirma que Abraão creu em Deus, e que Deus creditou isso a ele como justiça. Ele afirma ainda que o que trabalha ganha salário, mas que Deus declara que um ímpio é justificado porque tal pessoa confiou em Deus.

Romanos 4:13-14 — “Não foi por intermédio da lei que a Abraão, ou a sua descendência coube a promessa de ser herdeiro do mundo; e, sim, mediante a justiça da fé. Pois, se os da lei é que são os herdeiros, anula-se a fé e cancela-se a promessa”. Paulo declara que a promessa de salvação que foi dada por Deus a Abraão não foi recebida por se guardar a lei, mas por exercer a fé.

Gálatas 2:16 — “O homem não é justificado por obras da lei, e, sim, mediante a fé em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois por obras da lei ninguém será justificado”. Por três vezes Paulo deixa claro que o meio de ser justificado é pôr nossa fé em Jesus Cristo, não fazer boas obras. De fato, “por obras da lei ninguém será justificado”.

Observe que Paulo coloca a fé e a observância da lei em oposição uma à outra como meios de salvação: é uma ou outra, não as duas juntas.

Gálatas 3:11 — “E é evidente que pela lei ninguém é justificado diante de Deus, porque o justo viverá pela fé”. Paulo declara que seu argumento para a justificação está fundamentado no Antigo Testamento.

Filipenses 3:9 — “… e ser achado nele, não tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé”. Nós precisamos da justiça de Deus — de fato, a justiça de Cristo — e isto nos é dado através da fé em Jesus Cristo, que é nossa justiça (1Co 1:30; 1Jo 2:1).

É claro nesta e em outras passagens que a lei nos declara pecadores com necessidade da justificação de Deus, e que a fé, e somente a fé, é o instrumento pelo qual Deus traz a morte, ressurreição e justiça de Cristo sobre aqueles que crêem, e dessa forma os declara justos e justificados.

A Escritura fala desse ato como sendo a imputação da justiça de Cristo aos crentes. Isto é, a justiça dele é computada na conta deles, embora eles estejam apenas começando a experimentar a transferência da justiça de Cristo a seu homem espiritual. Embora eles sejam apenas pecadores perdoados (é “Deus quem justifica o ímpio” – Rm 4:5), Deus declara-os justos por causa da justiça de Cristo a eles imputada e recebida pela fé somente.

E o que diz Tiago?

Alguns podem objetar que nós não estamos levando em consideração o ensino de Tiago, que declara de forma totalmente clara: “Verificais que uma pessoa é justificada por obras, e não por fé somente” (Tiago 2:24). Sim, a observação de Tiago é tão verdadeira quanto a de Paulo. Para entendê-las melhor, vamos vê-las no seu contexto todo (Tiago 2:14-26):

“Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo? Se um irmão ou irmã estiverem carecidos de roupa, e necessitados de alimento cotidiano, e qualquer dentre vós lhes disser: Ide em paz, aquecei-vos e fartai-vos, sem, contudo, lhes dardes o necessário para o corpo, qual é o proveito disso?

Assim também a fé, se não tiver obras, por si só está morta. Mas alguém dirá: Tu tens fé e eu tenho obras; mostra-me essa tua fé sem as obras, e eu, com as obras, te mostrarei minha fé.

Crês, tu, que Deus é um só? Fazes bem. Até os demônios crêem, e tremem.

Queres, pois, ficar certo, ó homem insensato, de que a fé sem as obras é inoperante?

Não foi por obras que o nosso pai Abraão foi justificado, quando ofereceu sobre o altar o próprio filho, Isaque?

Vês como a fé operava juntamente com as suas obras; com efeito, foi pelas obras que a fé se consumou, e se cumpriu a Escritura, a qual diz: Ora, Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça; e: Foi chamado amigo de Deus.

Verificais que uma pessoa é justificada por obras, e não por fé somente. De igual modo, não foi também justificada por obras a meretriz Raabe, quando acolheu os emissários e os fez partir por outro caminho?

Porque, assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta”.

Como então podemos ver os ensinos de Paulo e Tiago como um todo consistente? Paulo diz que nós somos “justificados pela fé independentemente das obras da lei” (Rm 3:28), mas Tiago diz que “uma pessoa é justificada por obras, e não por fé somente” (Tg 2:24). Certamente que em face dessas duas afirmativas há uma contradição aparente. Mas, como Paulo e Tiago estão escrevendo sob inspiração de Deus, eles devem estar escrevendo sobre situações diferentes. Talvez eles estejam usando as palavras justificar e fé de maneiras diferentes. Vamos olhar novamente os dois escritores dessa forma como uma possível solução.

Paulo está expondo a grande promessa de Deus contida em Gêneses 15:6: “Pois, que diz a Escritura? Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça. Ora, ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e, sim, como dívida. Mas ao que não trabalha, porém crê naquele que justifica ao ímpio, a sua fé lhe é atribuída como justiça” (Rm 4:3-5).

Tiago, por outro lado, está escrevendo àqueles que proclamam crer, mas não dão nenhuma evidência de que suas vidas têm sido mudadas pela salvação que Deus dá aos crentes. Note como Tiago afirma isso no começo de seu argumento: “Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Pode, acaso, semelhante fé salvá-lo?” (Tg 2:14). Tiago está procurando mostrar que a fé verdadeira — a fé que Deus já imputou a alguém (observe como Tiago também cita Gênesis 15:6 em Tiago 2:23) — se manifesta em boas obras. Tiago diz que Abraão verdadeiramente creu, e, por isso, que Deus o tinha verdadeiramente contado como justo, porque Abraão demonstrou a realidade de sua fé (e salvação) ao obedecer a Deus (Tiago 2:21, 24).


Palavras com Diferentes Significados

Nós podemos ver essa diferença mais claramente se nós reconhecermos os diferentes modos com que Paulo e Tiago usam os mesmos termos. Quando Paulo fala de alguém sendo “justificado”, ele tem em vista o pronunciamento de Deus de que um pecador é justo. Mas quando Tiago usa a mesma palavra, ele tem em vista a demonstração do estado previamente justificado de uma pessoa.

Isto é, alguém demonstra, através de sua obediência, o que Deus já declarou sobre ele (Tiago 2:23, citando Gênesis 15:6).

Dizendo de outra forma, Tiago está usando a palavra justificar com o significado de “demonstrar ou mostrar que se é justo, ou inocentar a si mesmo”.

Este significado para a palavra em grego é também encontrado em Lucas 16:15 e 10:28-29, como também em Mateus 11:19, Lucas 7:35, e Romanos 3:4. Em Lucas 16:15, Jesus diz aos fariseus: “Vós sois os que vos justificais a vós mesmos diante dos homens, mas Deus conhece os vossos corações”. Similarmente, nós lemos em Lucas 10:29: “Ele, porém, querendo justificar-se…”.

Tiago está dizendo que alguém pode demonstrar diante dos homens (ou pode inocentar ou justificar a si mesmo, 2:24) que ele tem sido declarado justo por Deus. Uma pessoa pode fazer isso fazendo boas obras, exatamente como Abraão fez ao sacrificar seu filho Isaque (2:21; cf. Gn 22:9-12) bem depois de Deus tê-lo declarado justo. Tiago diz que esse episódio posterior demonstrou que a declaração de Deus em Gênesis 15:6 era verdadeira e se cumpriu (Tiago 2:23).

Quando Paulo fala de “ fé ”, ele quer dizer confiança genuína e real em Deus. Mas Tiago usa a palavra “ fé ” querendo dizer algo que precisa que se demonstre ser real na vida de alguém. Ele está tratando com aqueles que parecem expressar sua aceitação do evangelho, mas que de fato não têm fé ou  confiança verdadeira. Dessa forma, os demônios podem dizer que eles crêem, mas a sua assim chamada fé, e qualquer outra fé sem obras, é inútil (Tiago 2:19-20). Pelo menos duas vezes, nos versos 18 e 26, Tiago pede àqueles que proclamam ter fé a demonstrarem uma fé genuína, e não uma fé morta, fazendo boas obras. Isto é algo com que Paulo certamente concorda (ver 2Co 13:5; Gl 5:19-24).

As Obras Manifestam Fé Verdadeira

Assim sendo, as palavras de Paulo não contradizem as palavras de Tiago.

Paulo também argumenta que a fé verdadeira se manifesta em obediência real.

Ele diz em Romanos 6:1-2: “Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante? De modo nenhum. Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos?”.

E Paulo também fala de obras do mesmo modo que Tiago quando diz em Efésios 2:10: “Pois somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas”. Mas ele afirma esta grande verdade, de acordo com Tiago, após ter negado que as obras tenham qualquer parte em nossa salvação: “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie”.

Dessa forma, Paulo e Tiago de modo algum se contradizem, pois eles estão usando palavras com diferentes significados e estão apontando diferentes questões. Nós podemos afirmar com confiança que as palavras de Tiago não contradizem o ensino claro de Paulo de que nós somos salvos e justificados pela fé, independentemente das obras da lei. De fato, o próprio Tiago diz que Deus já havia imputado sua própria justiça a Abraão porque Abraão havia crido nele (Tiago 2:23).

O foco de Tiago é que as boas obras de Abraão, feitas como um homem já salvo, e não para obter salvação de Deus, demonstraram ou mostraram que sua justificação era verdadeira e real.

Justiça Divina

É apenas em Cristo que Deus manifesta sua justiça, sendo ele justo e habilitado para justificar a nós pecadores. Nós lemos desta grande verdade em Romanos 3:21-26: Mas agora uma justiça de Deus, à parte da lei, foi feita conhecida, à qual a Lei e os Profetas testificam. 

Essa justiça de Deus vem através da fé em Jesus Cristo a todo aquele que crê. Não há nenhuma diferença, para todos que pecaram e se afastaram da glória de Deus, e são justificados gratuitamente por sua graça através da redenção que veio por Cristo Jesus. Deus o ofereceu como um sacrifício de expiação [uma propiciação], através da fé em seu sangue. Ele fez isso para demonstrar sua justiça, porque havia se contido e deixado os pecados cometidos anteriormente impunes — Ele fez isso para demonstrar sua justiça no tempo presente, assim como para ser justo e Aquele que justifica aqueles que têm fé em Jesus.

Paulo pergunta como Deus pode ter perdoado pecados no passado e não ter punido as pessoas por eles.

A resposta para tais pecados e para nossos pecados é que Deus os puniu em Jesus Cristo. Desse modo, Deus não está retirando a afirmativa de que a alma que pecar deve morrer. Antes, Ele teve seu Filho morto por essa alma e assim cumpriu as exigências da lei.

Nós vemos essa verdade também em Romanos 4:25, onde Paulo diz que Cristo “foi entregue por causa das nossas transgressões, e ressuscitou por causa de nossa justificação”. O que nós precisávamos fazer para cumprir a lei de Deus, Deus fez por nós em seu Filho, punindo nossos pecados em sua morte e provendo nossa justiça em sua vida obediente e ressurreição. Dessa forma nós lemos novamente em 2Coríntios 5:21 que Deus, “Àquele (Jesus Cristo) que não tinha pecado, o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus”.

A justificação pode ser recebida apenas através da fé, porque é apenas através da fé que nós recebemos a justiça de Cristo, como Paulo diz em Filipenses 3:9, “e ser achado nele, não tendo justiça própria, que procede de lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé”.

Sumário

Vamos resumir. Nós somos salvos e justificados — isto é, todos os nossos pecados são perdoados e somos declarados justos por Deus — quando nós confiamos em Jesus Cristo e temos sua justiça imputada em nossa conta. Nós depositamos nossos pecados em Cristo, e Ele suporta a punição por eles, de modo que Deus nos perdoa para sempre. Ele nos concede, ou nos imputa, sua obediência justa, e nós somos considerados como vestidos em sua justiça e imediatamente declarados por Deus como justificados. Nós confiamos em Deus e Ele nos salva. Esse é o ato de Deus da justificação . E tudo isso acontece à parte de qualquer boa obra que nós possamos ter feito: Deus, “não por obras de justiça praticadas por nós, mas segundo sua misericórdia, nos salvou” (Tito 3:5).

E nós recebemos tudo isso pela fé, quando Deus nos dá um novo coração e uma habilidade para confiar em Cristo.

Quando nós exercemos a fé salvífica, Deus nos transforma total e interiormente, pela justiça de Cristo transmitida a nós para nos fazer santos.

Isso é chamado santificação. Ela começa com a justiça de Cristo sendo colocada em nós, e aumenta conforme vivemos nessa justiça confiando e obedecendo a Deus. Deus justifica o ímpio e perverso, e os torna santos conforme os santifica.

Apenas desta forma Deus salva a mim e a você!

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Sobre o autor: O autor é professor no Matthews OPC, em Matthews, N.C., e professor adjunto no Greenville Presbyterian Theological Seminary. Ele também serve em três conselhos da General Assembly: Home Missions, Loan Eund, e Ecumenicity. Reimpresso da New Horizons, Fevereiro de 2001.

FONTE: Revista Os Puritanos.

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