A Árvore no meio da Terra

Por Jacques B. Doukhan

Pela primeira vez o livro de Daniel apresenta um Nabucodonosor sorridente. Até agora sua expressão tem sido sempre de raiva. No capítulo 1 Nabucodonosor ataca e sitia Jerusalém (verso 1). O rei ameaça cortar as pessoas “em pedaços” e tornar as casas em “pilhas de entulhos” no capítulo 2 (verso 5). Então no capítulo 3 ele ordena todo mundo se ajoelhar adorar, ameaçando-os com uma “fornalha ardente” (versos 1-6). Este mesmo rei, uma vez o terror de seu próprio povo, agora saúda-os por um generoso shalom.  “Paz seja multiplicada para vocês” (Dan. 4:1, NKJV).

Pela primeira vez ele evoca “o Deus Altíssimo” (verso 2). Até então Nabucodonosor tinha se referido a Ele apenas indiretamente através da pessoa de Daniel. Agora pela primeira vez, ele reconhece o Deus dos Hebreus em um senso absoluto, como uma deidade superior aos outros deuses, e até como um Deus pessoal: “sinais milagrosos e maravilhas que Deus, o Altíssimo tem feito para comigo.”

Nos capítulos precedentes, Nabucodonosor apareceu apenas para dar ordens. Agora, pela primeira vez, suas palavras não atacam do comando. Em vez disso, elas representam um testemunho espontâneo do que Deus tem feito para ele. Pela primeira vez o rei está de bom humor: “pareceu-me bem…” Nabucodonosor não fala por que ele deve, mas porque ele gosta de fazê-lo. O cruel, vingativo governante que aprendemos a temer se torna um poeta, rompendo em uma canção sobre o Altíssimo.

I. Sinais e Maravilhas

Seu coração, ainda está maravilhado com os milagres que ele experimentou.  Nabucodonosor deixa sua alma transbordar com louvores. É a terceira oração do livro de Daniel.

Embora composta por um rei pagão a oração é apesar disso, exemplar e bela. Lendo a passagem, os rabinos do Talmude exclamaram: “O rei roubou todas as canções e louvores de David.”  Suas primeiras palavras são um clamor, uma exclamação repetida em um ritmo de três palavras: “Sinais, quão grandiosos!  Maravilhas, quão poderosas!” (tradução literal da primeira parte do verso 3).

A sintaxe da frase aramaica enfatiza cada primeira palavra (“sinais,” “maravilhas”) para transmitir melhor a admiração do rei.  Por definição, a função dos sinais e milagres é atrair atenção pelo seu caráter extraordinário evocando assim outra realidade invisível à percepção humana.

Vendo tais milagres, o rei intuitivamente sente aquela realidade. Nabucodonosor não só fica maravilhado pelo milagre – ele também percebe, através do milagre presente, o milagre do futuro, o reino de Deus. Para ele, o milagre não é apenas um sinal de estar sendo abençoado e sucesso na terra, mas também uma indicação para outro mundo, do reino por vir.

O poema aqui desenvolve em um duplo paralelismo em um ritmo de três palavras: “Seu reino (é) um reino eterno. Seu domínio de geração em geração” (verso 3, tradução literal).

Esta verdade provavelmente é a mais difícil para Nabucodonosor aceitar. Desde seu sonho da estátua, o governador babilônico nunca pode admitir que seu reino era apenas a cabeça. Como filho do deus Marduk, ele queria que seu reino fosse eterno. Pela primeira vez, ele entende que eternidade é uma característica só do reino de Deus. É o único reino eterno. Apesar de rei da Babilônia, Nabucodonosor reconhece pela primeira vez a existência de uma autoridade acima dele. E ele vai mais além, quando ele reconhece que o domínio de Deus se estende de “geração em geração”. Não só a presente geração, mas todas aquelas que virão se submeterão à Sua autoridade.

Mas o milagre foi somente, um antegozo das coisas por vir. Nabucodonosor agora anseia por mais, por outro tipo de alegria, por outro reino. O milagre não trouxe com ele nenhuma solução durável. Doenças e obstáculos irão de novo surgir na próxima virada. A razão de existir dos milagres é essencialmente produzir, em um instante de consciência, o reconhecimento daquele outro mundo.

A oração de Nabucodonosor anseia por um reino por vir. Nascendo do milagre, ela, como toda oração verdadeira, testemunha do reino de Deus. Um sonho, pela primeira vez, o fez entender como tudo ê efêmero. O terrível sonho subjugou-o na época em que ele estava mais tranquilo, mergulhando-o na profundidade de seu ser e de sua existência.

II. A Exposição do Sonho

“Eu, Nabucodonosor, estava sossegado em minha casa, e próspero no meu palácio. Tive um sonho…” Sua serenidade é de início suspeita. A palavra aramaica usada aqui para denotar sua paz (verso 4) já apontava para o sonho que o sacudiria. O adjetivo raanan frequentemente caracteriza uma árvore em seu vigor (Deut. 12:2); Isa. 57:5). O sonho compara Nabucodonosor a uma árvore florescente. À primeira vista, nada na árvore sugere uma tragédia chegando, e mesmo assim a tragédia golpeia. O sonho é completamente bizarro, e ninguém ousa interpretá-lo. Ele consulta todo tipo de sábios: Os hartumayya, mágicos egípcios, experts na interpretação de sonhos (Gên. 41:8). Os ashpayya, versados na arte de predição. Os gazarayya, interpretadores dos decretos dos deuses (gazar). Todos estão sentenciados ao fracasso (Dan. 4:7).

Como último recurso (verso 8), fala Daniel. Alguém pode ter curiosidade de saber por que Nabucodonosor não o convocou imediatamente, ciente como ele era de que o “espírito dos deuses santos” era com o profeta hebreu e que “nenhum mistério” era “difícil” para ele (verso 9). De acordo com o texto, parece que o rei até ignorou Daniel por um longo tempo. Todo homem sábio recebeu uma convocação para aparecer perante o rei exceto Daniel, que veio por iniciativa própria. Encurralado, Nabucodonosor agora não tem escolha senão ouvir a interpretação do profeta hebreu. Assim como no capítulo 2, o rei se recusa enfrentar a realidade que não se encaixa em suas próprias aspirações. Mais uma vez, uma verdade inesperada golpeia-o, uma verdade perturbadora como qualquer uma de origem divina.

Mas até então Nabucodonosor se lança fora dela. Sua principal preocupação agora é manter as aparências. Ele reconhece a superioridade de Daniel (“no qual há o espírito dos deuses santos”), mas consegue escorregar na frase “Daniel, cujo nome é Belteshazzar, segundo o nome de meu deus” (verso 8). O rei atribui o poder de Daniel a seu deus babilónico. Sua humildade só esconde o seu orgulho.

Quando o sonho de Nabucodosor é visto no contexto de seu orgulho e alegria inconsciente, o sonho de Nabucodonosor toma um significado todo diferente. Sua narração e interpretação desenvolvem em dois estágios, ambos introduzidos por um paralelo referente ao que o rei viu (versos 10, 13, 20, 23). O primeiro estágio é positivo e envolve uma árvore, em seu vigor. O segundo é negativo, e fala do destino da árvore.

III. A Explicação do Sonho

O simbolismo da árvore não era estranho para Nabucodonosor. Herodotus fala do caso de Astyages, cunhado de Nabucodonosor, que também sonhou com uma árvore simbolizando seu domínio sobre parte do mundo2. Nabucodonosor ele próprio, em uma inscrição, compara Babilônia a uma grande árvore abrigando as nações do mundo.  Além disso, o paralelo entre a árvore e a estátua do capítulo 2 é suficiente claro para Nabucodonosor entender alguma das mensagens básicas do sonho. A passagem descreve a proteção providenciada pela árvore nos mesmos termos que no capítulo 2. Daniel fala a Nabucodonosor no capítulo 2: “em cuja mão ele entregou os filhos dos homens, onde quer que habitem, os animais do campo e as aves do céu” (verso 38) O capítulo 4 declara da árvore: “debaixo dela os animais do campo achavam sombra, e as aves do céu faziam morada nos seus ramos, e dela se mantinha toda carne” (verso 12). Como a cabeça da estátua, a árvore é visível “até os confins da terra” (verso 11). O narrador identifica a árvore com a cabeça da estátua, e ela representa Nabucodonosor.

A metáfora da árvore alude também ao caráter presunçoso do rei, comparando Nabucodonosor a Adão em sua função como administrador do universo (Gên. 1:28). Também aponta para a árvore da vida (ou árvore do conhecimento do bem e do mal) em sua posição nomeio da terra (Gên. 2:9; 3:3). A árvore se expande pro todo o céu (Dan. 4:11, 20).  Evidentemente não é uma árvore comum. Tudo aponta para sua superioridade.

Mas, debaixo de toda sua folhagem de louvor tem uma camada de dura crítica. Pois é o orgulho de Nabucodonosor que a figura da árvore de fato retrata. Ezequiel usa a mesma metáfora para representar o orgulho da Assíria (Eze. 31:3-9). A passagem de Eze. partilha muitos motivos comuns com Daniel 4. Também a árvore abriga as aves e os animais (verso 6). Além disso, a árvore está plantada no meio do jardim (verso 9) e se  sobrepõe a todas em altura (versos 2, 5). O texto de Daniel não é senão um eco da passagem  em Ezequiel. O orgulho do rei é proporcional à altura da árvore: “Como se elevou na sua estatura, e se levantou a sua copa no meio dos espessos ramos, e o seu coração se ufanava da sua altura.” (verso 10).

Esta árvore, que se expande para os céus, majestosa e que abriga, é de fato um insulto aberto a Deus. (é interessante que o Novo Testamento emprega a mesma imagem da árvore para representar o reino de Deus [Lucas 13:19]). A árvore do sonho simboliza o orgulho de um rei que pretende substituir Deus. Mas Nabucodonosor não tem dúvida do que a árvore descreve. Na luz de sua própria cultura babilônica e acima de tudo, de seu primeiro sonho, ele não pode senão reconhecer que a árvore está para ele mesmo. E com isso em mente, não é de admirar que o rei da Babilônia prefira contar com a explanação dos astrólogos. Contudo, quando Daniel entra em cena, ele treme e suas primeiras palavras são cheias de tato e vontade: “Senhor meu, seja o sonho para os que te odeiam!” (Dan 4:19). Mas a interpretação que segue corta como uma faca: “A árvore… és, tu, ó rei!” (verso 22)

2.  A Queda da árvore

Um movimento descendo do alto (verso 23), como na antiga história de Babel (Gen.  11:4,5) repentinamente para o crescimento da árvore. A primeira cena do sonho foi visual e estática em sua descrição da magnífica árvore. A segunda cena tem som e é dinâmica, pois o rei vê os movimentos dos seres celestiais e ouve a voz de comando. A primeira cena, pacífica e majestosa, contrasta com a segunda cena, tumultuosa e perturbante. Da serenidade da descrição inicial agora movemos para violenta atividade.

A identidade desses seres celestiais já sugere uma mudança no destino do rei: “Um daqueles que mantém vigia” (tradução literal Dan. 4:13, 17, 23). É a única ocorrência na Bíblia de um ser assim. O sonho aqui fala a linguagem do rei. De acordo com uma antiga crença babilônica, como atestado no comentário Zoroastrian de Zend-Avesta, o grande deus colocou quatro vigias sobre os quatro cantos do céu e sobre os movimentos astrais.’

Nabucodonosor entende a presença dos seres celestiais como significando que o grande Deus dos céus está determinando seu destino. O sonho, contudo, retrata os seres de  acordo com a tradição bíblica, apresentando-os como “santos,” um termo usualmente aplicado a  anjos em muitos textos bíblicos (Jó. 5:1; 15:15; Sal. 89:7; Zac. 14:5). A Septuaginta segue esta  linha de interpretação em sua tradução da palavra “vigia” pela palavra “anjo,” O “vigia,” ou anjo  do céu, anuncia o destino do rei em duas sentenças.

A primeira sentença consiste de diversos comandos referentes à árvore (Dan. 4:14, 23).  Uma vez cortada, a árvore desaparece de vista. Despida e seus ramos, folhas e frutos, ela perde sua função de alimentação e abrigo universal (versos 14,21). O oráculo significa que o rei seria “expulso do meio dos homens” (verso 25).

A segunda sentença contém apenas um decreto, referente ao estado da árvore depois da destruição (verso 15). A árvore, cortada e despida, está presa no solo para conter seu crescimento. O uso de correntes de ferro e bronze, conhecido por sua força (II Cron. 24:12), garante que a árvore não vai crescer enquanto elas estiverem lá. O verbo usado sugere uma árvore “aprisionada” (asar) em um estado animal. A linguagem do sonho identifica o tronco da árvore com um animal. De fato, não tem a aparência de um animal. Ele mora com os “animais selvagens” (Dan. 4:25), dorme com eles, é “molhado com o orvalho do céu” (versos 15, 23), come “erva como os bois” (verso 25), e até pensa como eles: “seja mudada a sua mente, para que não seja mais a de homem, e lhe seja dada mente de animal” (verso 16).

A substituição de uma mente de animal para um humano é, para Daniel, a chave para esta estranha metáfora. Nabucodonosor vai deixar de ser um animal só quando ele reconhecer que “o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens” (verso 25). Em outras palavras, o estado animal do rei está ligado à sua inconsciência religiosa. O rei não tem conhecimento real de Deus.

Do um ponto de visto bíblico, o rei não pode se inclinar a qualquer rebaixamento.  Confinado a um estado animal, ele não pode ser entregue. Ele ouve o oráculo como um  “decreto” do alto (verso 24) e ele é definitivo e absoluto. Deus tem até fixado o tempo envolvido:  “sete tempos” (verso 25). O número é sagrado, apontando para a origem divina do decreto.

Mas o oráculo ainda deixa margem para esperança. Afinal de contas, a queda atual da árvore ainda não aconteceu no sonho. Nabucodonosor apenas ouve ordens sobre ele. O momento de executar a profecia ainda não chegou. De fato, Nabucodonosor continua exagerado, em seu vigor. Ele ainda tem tempo de reverter o oráculo. “Põe fim aos teus pecados praticando a justiça, e as tuas iniquidades usando de misericórdia com os pobres, se porventura se prolongar a tua tranquilidade” (verso 27). Duas vezes Daniel lembra ao rei que o reconhecimento de Deus o salvará (verso 26).

A solução é religiosa e se preocupa com seu relacionamento com o Deus do céu. Mas tem também um aspecto ético que envolve seus companheiros humanos. O profeta exorta Nabucodonosor a ser justo e misericordioso (verso 27). Arrependimento envolve uma dimensão tanto horizontal quanto vertical. Somente pelo reconhecimento de um Deus que o transcende estaria Nabucodonosor habilitado a respeitar o pobre e praticar justiça (tsedaqa). É o reconhecimento de Alguém fora de si mesmo que forma as bases do respeito pelos outros. O temor de Deus, isto é, nossa consciência de que Deus está nos vendo, previne contra indulgência e obriga alguém à justiça. Por outro lado, é impensável cultivar um relacionamento com Deus quando alguém está de mal com os outros. O amor de Deus implica o amor do vizinho. Assassinar alguma pessoa é assassinar a imagem de Deus (Gên. 9:6). Do mesmo modo, ignorar Deus é desprezar outros. Ética e religião estão entrelaçadas, uma implicando a outra. De acordo com Daniel, o arrependimento do rei ainda é possível; ele ainda tem uma janela de escape (Dan. 4:27).

O resultado do decreto é então responsabilidade do rei. Seu destino repousa em suas mãos. Nabucodonosor é livre. Mas permanece ainda uma nota de incerteza. O oráculo introduz a garantia da prosperidade, em caso de arrependimento, com a conjunção hen, significando “talvez”. Mesmo que o rei se arrependa, a benção de Deus não pode ser certa. Deus também é livre para agir como Ele quer. Nabucodonosor não deve se arrepender para ter sua prosperidade de volta. Mas porque ele entende a gravidade de seus pecados. Dessa forma, sua resposta não seria sincera ou de livre escolha. Com seu próprio interesse em mente Nabucodonosor não se arrependeria porque ele queria, mas porque ele tinha de fazê-lo para preservar seu bem-estar. Para ser livre, e, portanto, autêntico, o arrependimento deve ser incondicional.

Do mesmo modo, não podemos forçar Deus a abençoar e recompensar o justo. Ele não seria um Deus soberano então, mas uma máquina de vendedor. Deus é livre, como os seres humanos. Devemos receber suas bênçãos como uma graça, concedida independentemente de nossas boas obras.

Um raio de esperança agora penetra as trevas do sonho: qualquer coisa é possível. E mesmo se o arrependimento não resulta em perdão, mesmo se o oráculo venha acontecer e a árvore caia perante o golpe do machado, mesmo então ainda resta uma saída. A vida da árvore não está ameaçada, nem arrancada pela raiz. O tronco e raízes (iqqar) permanecem. Embora cortada, a árvore tem o prospecto de uma nova primavera. A quantidade fixa de tempo (sete tempos), lembrando que haverá um fim do decreto, em si oferece esperança; até nas horas mais escuras, a esperança se demora.

IV. O Cumprimento do Sonho

1.1 Orgulho do Rei

Daniel fala, tanto sobre a interpretação do sonho, como de seu cumprimento. Em ambos os casos, o rei não pode falar, no primeiro porque Daniel está falando, e no segundo caso porque o rei não é mais capaz de falar. Este segundo silêncio é também parte do cumprimento da profecia. A terceira pessoa no singular da passagem sugere que o rei não pode mais falar por ele mesmo. Ele tem se tornado apenas um objeto. O cumprimento da profecia está situado no tempo e no espaço, como um evento histórico. Ele ocorre um ano mais tarde, no aniversário do sonho, no palácio real.

O rei se afunda em sua satisfação sobre seu cumprimento, sem ter consciência do que está para lhe sobrevir. Nós encontramo-lo quando “passeava sobre o palácio real” admirando os frutos de sua prosperidade (versos 29, 30). Mas esta vez, o texto muito mais explicitamente, aponta o orgulho básico do rei: “Não é esta a grande Babilônia que eu edifiquei para a morada real, pela força do meu poder, e para glória de minha majestade?” (verso 30).

E de fato, Babilônia era digna de mérito. Nabucodonosor fez sua marca na história como o maior construtor de Babilônia, diferente de seus predecessores, que eram principalmente conquistadores. Antigos monarcas preferiram morar nas cidades de suas escolhas e vinham a Babilônia só em ocasiões especiais. Para Nabucodonosor, contudo, a cidade era sua residência real, “a cidade de seu orgulho”, E de fato. Babilônia deve a ele seu notável reconhecimento.  Expandindo mais de sete quilômetros quadrados, com seu palácio, seus jardins suspensos e seus 50 templos. Babilônia foi uma das sete maravilhas do mundo antigo e foi uma das maiores cidades da época.

De acordo com testemunho do sacerdote babilônico Beroso e dos antigos tabletes cuneiformes, Nabucodonosor foi o principal arquiteto da cidade. Além dos numerosos templos  e muros fortificados, o rei construiu seu palácio, em suas próprias palavras “como um  monumento ao gênio e poder dos reis da Babilônia”. Os jardins suspensos foram também criação sua, para sua esposa Amitis, recordar das árvores, flores, e colinas de sua Media nativa. A grandiosa beleza da cidade causou uma impressão permanente nos viajantes e poetas.  Mas foi o orgulho que impulsionou Nabucodonosor a assumir este trabalho. E é, através dos olhos do orgulho, que ele contemplaria mais tarde sua criação – não apenas como disse a Bíblia, mas também como relatado pelas inscrições cuneiformes. Uns 50 tabletes de autoria de Nabucodonosor mesmo testemunham de seus sentimentos. Nabucodonosor escreveu sobre seu palácio: “construí este palácio, lugar de minha realeza sobre os poderosos reis… palácio de alegria, de regozijo… Na Babilônia, eu edifiquei-o, sobre o topo do antigo canal… com argamassa e tijolos eu assegurei seus fundamentos”.8 Ou, sobre a cidade da Babilônia como um todo: “Eu tenho construído Babilônia, a cidade santa, a glória dos grandes deuses, mais proeminente que antes… Nenhum rei… jamais criou, nenhum rei anterior jamais construiu, o que eu de forma magnífica construí para Marduk”.9 A profecia tinha predito o orgulho do rei pois ela o descreve como uma poderosa árvore, seus galhos atingindo os céus, aspirando à divindade.

De maneira interessante, o texto relembra ao leitor a história de Babel. Como Nabucodonosor, os construtores da Torre de Babel queriam “atingir os céus”. Como o rei babilônico, eles procuraram “façamo-nos um nome” (Gen. 11:4). E do mesmo modo, uma voz do céu interrompe o trabalho deles (versos 5-7), alterando sua linguagem para uma fala incompreensível (verso 9).

2.1 Rei Insano

Os sintomas

O rei começa a agir como um animal, comendo, dormindo, e pensando como um boi. Paradoxalmente, ao procurar sobrepujar outros humanos, ele caiu abaixo da humanidade. Qualquer ambição de sucesso deve ponderar cuidadosamente seu significado.  Quando alguém atinge o topo, que alternativa há senão mergulhar de volta?

A pequena aventura de Nabucodonosor parece que tem outros paralelos na história antiga. Em Babilonian Job (1600-1150 AEG) nós lemos; “Como um she-nâkim ou um sükü demon ele fez minha unha do dedo crescer”.’

A novela de Ahikar (sétimo século AEG) tem um dito característico: “Eu me encurvaria sobre a terra, meu cabelo caindo sobre meus ombros, minha barba caindo sobre meu peito, meu corpo estava coberto de poeira, e minhas unhas eram como as da águia.”

Hoje psicólogos tem diagnosticado o comportamento de Nabucodonosor como uma variante de paranoia e esquizofrenia. Gregory Zilboorg, historiador da psiquiatria, relata diversos casos assim entre o 3º e 7º séculos aC. Tão rara e estranha quanto a doença possa parecer, ela tem sido uma constante através da história. Hoje praticamente isso desapareceu nos países industrializados, onde elas são tratadas adequadamente, mas traços dela aparecem na China, índia e América do Sul. Nos anos recentes diversos casos assim foram encontrados nos hospitais de Paris e Bordeaux.

Os sintomas são sempre os mesmos. O paciente imagina que ele foi transformado em um lobo (licantropia), um boi (boantropia), ou outro animal, (cão, leopardo, cobra, crocodilo), e comporta-se como tal nos mínimos detalhes. A ilusão do paciente é tão perfeita que afeta até o modo como ele se vê. Uma mulher de 49 anos estava convencida que sua cabeça era de totalmente de lobo com focinho e dentes caninos. E quando ela abria sua boca para falar ela ouviria seu rosnar e uivo como um animal.

Se crermos no que os historiadores e psiquiatras mencionaram acima, a “síndrome de Nabucodonosor” parece ter verdadeiramente existido. Claro, encontramos completo silêncio tanto quanto as crônicas oficiais babilônicas são envolvidas. Ainda um número de recursos extra bíblicos parecem dar apoio à história bíblica.

Três séculos depois da morte de Nabucodonosor o sacerdote babilónico Beroso fala-nos que “depois de quarenta e três anos de reinar, Nabucodonosor caiu doente no local da construção de uma muralha… e morreu”.16 Esta ligação entre a doença do rei e construção de um período de doença precedendo a morte aponta para o caráter especial que esta doença deve ter tido.

Um historiador grego Abydenus (terceiro século a.C) testemunha que Nabucodonosor se tornou “possuído por um deus ou alguma coisa do tipo, escalou o terraço de seu palácio pronunciando palavras proféticas, e desaparecendo repentinamente. De novo encontramos diversos motivos em comum com o texto bíblico: a localização do rei no terraço, uma profecia, e seu inexplicável desaparecimento.

Finalmente, a descoberta recente de tabletes cuneiformes confirma a narração bíblica. Em 1975 o assiriologista A. K. Grayson publicou um texto cuneiforme, agora conservado no Museu Britânico (BM 34113 = sp213), que faz alusão à insanidade de Nabucodonosor. Parece que por um pouco “sua vida pareceu sem valor”, ele deu ordens contraditórias e sem sentido, e ele não podia expressar afeição nem a seu filho ou sua filha, reconhecer seu clã ou até participar na construção de Babilônia e de seu templo.  Considerando a história e diagnósticos psiquiátricos, a história de Daniel parece possível.

O tempo.

De acordo com o texto bíblico, Nabucodonosor permaneceu em sua condição patológica por um período de “sete tempos”. Situar a doença no tempo dá um certo grau de historicidade. O texto localiza o evento exatamente após o rei acabar seu projeto especial de construção na Babilônia. Diversos elementos sugerem que devemos traduzir a palavra aramaica idan no sentido de “anos”:

1.Significantemente a doença do rei começa exatamente “depois de doze meses”, lembrando que alguém poderia começar a contar em termos de períodos de 12 meses adicionais. O ano é a unidade básica na qual devemos converter “tempos” proféticos.

2.A relação entre estes dois períodos de tempo (12 meses e sete anos) está destacada no estilo do texto. As duas expressões “doze meses” e “sete anos” imitam uma à outra, desde que a expressão similar aramaica (“no fim desse tempo”, liqsath [versos 29 e 34] introduzem ambos os termos.

3.A etimologia da palavra idan (tempo) está relacionada à palavra od (repetir, retomar, refazer), apontando a uma repetição do mesmo tempo, ou da mesma estação (Dan. 2:21) de cada ano novo.

4.Daniel 7:25 define idan como sendo um ano, um conceito que encontramos até mais explícito na passagem paralela de Apocalipse 12:14 (ver depois esses capítulos).

5.A Septuaginta e os rabinos medievais (Rashi, Ibn Ezra, etc.) mantêm esta interpretação baseada no sentido de “anos”.

Quando a passagem usa a palavra “tempos” em lugar de “anos”, é para atrair nossa atenção ao número sete, símbolo do divino. E, de fato, a doença não é de causas naturais, mas divinamente infringida. O fim do julgamento de Nabucodonosor está “selado” (Dan. 4:16, 34). Deus controla seu destino, e ninguém pode mudá-lo.

V. Oração do Morto

Isto é, ninguém a não ser o rei pode alterar: “Eu, Nabucodonosor, levantei ao céu meus olhos, e voltou a mim o meu entendimento” (verso 34). Não importa quanto severo seja o caso de lycantropia, o paciente sempre retém um fragmento de consciência e experimenta ocasionais momentos de lucidez. Até nas garras de uma doença mental uma pessoa permanece humana, nunca perdendo completamente seu potencial para liberdade e vontade livre. Os psicólogos, cientes disso, então, recusam classificar seus pacientes sob um rótulo irrevogável de “louco”. Em vez disso eles consideram o paciente como uma pessoa doente, indicando que sempre existe um potencial para melhora.

Nossa passagem revela que até o mais rígido determinismo pode ser influenciado pela liberdade humana. Até no poço da bestialidade, alguém pode erguer os olhos e ser reunido à humanidade. Tudo o que Nabucodonosor tinha de fazer era levantar seus olhos para o céu (verso 34). Nabucodonosor se tornou um animal quando ele pensou de si mesmo como um deus e olhou para baixo, da cobertura de seu palácio real. Mas ele readquiriu sua humanidade quando se viu ele mesmo como um animal, e levantou os olhos da sujeira de sua morada animal. O paradoxo é valioso, tanto no nível psicológico como teológico.

É impossível para o próprio humano se desenvolver sem primeiro conhecer suas limitações. Qualquer um que pensar ser um passarinho vai se atirar contra uma janela e aterrissar no pavimento abaixo em muito más condições. Para estar habilitado a voar, alguém precisa cultivar um conhecimento das leis da gravidade e trabalhar em torno delas. Aqui encontramos o segredo da liberdade e felicidade. Mas há ainda outra lição, esta vez com respeito a salvação. Somente aquele que é capaz de ver além dele ou dela mesmo pode ser salvo. Salvação é de fora, não de dentro. Como Nabucodonosor, devemos levantar nossos olhos em direção ao céu. Quando o rei descobre esta verdade no profundo de sua alma, sua sanidade retorna com sua fé, confirmando a tradição bíblica: “Diz o néscio em seu coração: ‘Não há Deus’” (Sal 53:1, 14:1). A ilusão é pensar que é uma ilusão acreditar. Para Daniel, fé e razão são compatíveis. Fé emerge da razão e, é a característica fundamental da razão.

A experiência de Nabucodonosor tem implicações universais. Além da cura do rei, nós percebemos o milagre da ressurreição. As primeiras palavras desta seção já apontam para isso: “ao fim dos dias” (tradução literal, verso 34). Daniel 12:13 usa as mesmas palavras em relação á ressurreição. A “ressurreição” de Nabucodonosor, pavimenta o caminho para a ressurreição “no fim dos dias.” O rei babilónico desperta de seu estupor e fala. Até agora a passagem tem se referido a ele na terceira pessoa. Tendo readquirido a consciência, ele está de novo habilitado a falar na primeira pessoa. Suas primeiras palavras são uma oração – a quarta oração do livro de Daniel.

Ainda coberto de sujeira, seus olhos captando os céus, Nabucodonosor deixa seus pensamentos se alternarem do céu a terra e da terra ao céu. Isso dá a sua oração uma estrutura particular.

Recuperada sua sanidade, o primeiro movimento de Nabucodonosor é para o céu. Das três emoções de sua alma (“eu bendisse… eu louvei e glorifiquei”) ele paraleliza três atributos de Deus (Ele vive para sempre, Ele domina para sempre, Ele reina para sempre) (verso 34). As três referências à eternidade de Deus fazem eco às três expressões de adoração por Nabucodonosor. Tudo começa com o reconhecimento da eternidade de Deus, de Sua existência, de Seu domínio, e de Seu reino.

O ressuscitado vai da morte para vida. Ligando-se de volta à existência, ele está para sempre impressionado com a noção da eternidade de Deus. Sua oração é então aquela de adoração, focalizada totalmente em Deus. Nabucodonosor expressa seu agradecimento (ele louva a Deus), seu temor (ele honra a Deus), e sua admiração (ele glorifica a Deus). Como ele emerge da insanidade, Nabucodonosor não vê nada senão Deus. Repentinamente ele se toma ciente de que deve tudo a Ele. Sem Deus ele não é nada.

É a primeira lição que ele aprende sobre seu retomo, “e todos os moradores da terra são reputados em nada” (verso 35). O texto original usa duas palavras: hshb, que significa “avaliar,” “contar,” e Ia, que significa “vazio,” “nada,” ou o advérbio de negação, “não.” Perto de Deus, os habitantes da terra parecem como “nada.” Salvação então é possível apenas através do milagre da criação. Nabucodonosor claramente alude à criação na associação clássica de “céu e terra” com a “ação” e a “mão” de Deus (verso 35). Na mão de Deus os exércitos do céu assim como os habitantes da terra são ineficazes. “Não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: que fazes?” É uma expressão que a Bíblia usa no contexto da criação.

“Ai daquele que contende com o seu Criador! o caco entre outros cacos de barro! Porventura dirá o barro ao que o formou: Que fazes? Ou dirá a tua obra: Não tens mãos?” (Isa. 45:9).

“Ele é sábio de coração e poderoso em força. Ele dá ordens ao sol… o que sela as estrelas; o que sozinho estende os céus, e anda sobre as ondas do mar; o que fez a Ursa, o Órion, […] Quem lhe dirá: Que é que fazes?” (Jó 9:4-12).

Nabucodonosor tomou o milagre da criação para se tornar completo. Ele tinha perdido tudo, inclusive sua própria identidade. Agora ele recebe tudo de volta: “voltou a mim o meu entendimento… minha majestade e o meu resplendor” (Dan. 4:36). A palavra tub (“retomou,” “restaurou”) aparece três vezes na passagem, uma vez no verso 34, duas vezes no verso 36.

Ele se tornou até mais próspero: “fui restabelecido no meu reino, e foi-me acrescentada excelente grandeza” (verso 36). Neste sentido, podemos comparar a experiência do rei com a ressurreição. Os ressuscitados se levantarão para a vida, vindo da sepultura em um estado melhor e mais glorioso que antes (Ver I Cor. 15:35-50).

É do alto de seu sucesso que o rei pronúncia as últimas palavras de sua oração, as quais são também suas últimas palavras no livro de Daniel. A oração termina como ela começou. A mesma estrutura triplicada apóia os atributos divinos assim como a emanação (expansão) de sua alma: “Eu, Nabucodonosor, louvo, e exalço e glorifico ao Rei do céu” (Dan. 4:37). Como oposto ao satisfeito e prospero “Eu Nabucodonosor” do verso 4, este “Eu, Nabucodonosor” é totalmente focalizado no céu. O novo rei pode agora ver além dele mesmo em direção a Deus. O quadro de amor a Deus digno de louvor, de honra e gloria agora é completado com a dimensão de justiça: “Todas as suas obras são retas, e os seus caminhos justos, e ele pode humilhar aos que andam na soberba”. Nabucodonosor se livrou de seu infantil orgulho. Ele amadureceu para a humildade. O que os outros aprendem em uma vida inteira, Nabucodonosor entendeu num tempo de sete anos. Tendo experimentado a precariedade da vida, agora ele sabe que não é eterno. E ciente de suas limitações, ele decide seguir o caminho do arrependimento e da humildade. O monarca finalmente experimentou a conversão.

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