Daniel Capítulo 8: por Siegfried J. Schwantes – A Visão das 2.300 Tardes e Manhãs

Verso 1 Esta visão é datada do terceiro século do reinado de Belsazar. Esta data corresponde a c.550/549a.C., que acontece ser o mesmo ano em que Ciro revoltou-se contra seu sogro Astíages da Média, e uniu-se os dois reinos sob um só cetro.

Verso 2 Daniel é transportado em visão para Susã, outrora capital de Elão, mas que tinha sido incorporada no território da Pérsia. Isto é significativo porque a visão omite os últimos anos do decadente império babilônico, e focaliza a atenção nos acontecimentos que transcorrem depois que a Medo-Pérsia assume a liderança nos negócios no Oriente Próximo.

No final da visão Daniel se encontra de novo em Babilônia, tratando “dos negócios do rei” (v.27). Não há razão, pois, para imaginar que Daniel se jubilara depois da morte de Nabucodonozor.

Verso 3 O carneiro com os dois chifres é interpretado no v.20 como símbolo da monarquia unida da Média e Pérsia. “Reis” e “reinos” se equivalem tanto neste capítulo como no cap. 7. Assim os 4 chifres que brotaram no lugar do “grande chifre” são interpretados como 4 reinos (v.22 u.p.). A profecia não está lidando com reis individuais, mas com entidades políticas maiores e mais duradouras. A única exceção a esta regra é o “chifre grande” do “bode peludo”, que é dito ser “o primeiro rei”, isto é, Alexandre o Grande. O mais alto dos dois chifres do carneiro deve simbolizar a Pérsia que de fato só atingiu importância militar depois da Média. Embora a Média se constituísse como nação primeiro, foi a Pérsia que com Ciro II assumiu a liderança em 550 a.C.

Verso 4 De sua base no Oriente a Medo-Pérsia dava marradas para o ocidente, para o norte e para o sul, engrandecendo-se cada vez mais até o ponto de eclipsar todos os impérios anteriores em extensão territorial.

Verso 5 A rapidez com que Alexandre à testa das falanges macedônicas veio do ocidente e destruiu o Império Medo-Persa é descrita neste verso e no seguinte. O “chifre notável” do carneiro é interpretado no v.21 como sendo o “primeiro rei”, evidentemente uma referência ao próprio Alexandre, o fundador do novo império.

Versos 6 e 7 Assim como o carneiro não podia competir em força com o bode, os exércitos persas não estavam à altura dos exércitos greco-macedônicos sob o comando de Alexandre. A despeito do seu número as hostes persas foram desbaratadas ignominiosamente pelos ataques de um adversário altamente aguerrido.

Verso 8 Se o carneiro se engrandeceu em seu dia, o bode greco-macedônico “se engrandeceu sobremaneira”. As proezas de Alexandre excederam de longe as de Ciro o Grande ou qualquer dos seus sucessores. A Alexandre não foi dado, porém, desfrutar por muito tempo os frutos de seu esforço hérculeo. Sua morte inesperada quando ainda não tinha completado 33 anos pôs termo a sua carreira brilhante. O desmembramento de seu império em 4 reinos é bem descrito neste verso. Verificar a interpretação no v. 22. Para mais pormenores ver o comentário de Dan.7:6.

Verso 9 A interpretação dos versos 2 a 8 acima é posta acima de qualquer controvérsia pela explicação detalhada dada pelo anjo nos vv. 20-22. A unanimidade dos comentadores cessa, porém, com o verso 9.

Se o princípio do paralelismo dos cap. 2, 7 e 8 é aplicado consistentemente, então o chifre dos vv. 9-12 que surge depois da visão do Império de Alexandre só pode simbolizar Roma. Deve-se admitir que a maior parte dos comentadores do séc. XX vê neste “pequeno chifre” um símbolo de Antíoco Epifânio (175-163 a.C.), em sua tentativa fútil de acabar com os costumes e a religião dos judeus. Mas ao fazê-lo os comentadores ignoram o paralelismo entre os cap. 2, 7 e 8, os quais sem exceção cobrem todo o tempo que vai de Daniel até ao final da História. O sonho do cap. 2 atinge o clímax quando DEUS suscita “um reino que jamais será destruído” (v.44). A visão do cap. 7 culmina com a vindicação pelo tribunal celeste do “povo dos santos do Altíssimo”, a quem afinal um reino eterno é dado (v.27). O cap. 8 reconta as atividades sacrílegas de uma certa potência contra o povo de DEUS, a verdade de DEUS e o santuário celeste, mas no desfecho da história este poder “será quebrado sem esforço de mãos humanas” (v.25). A linguagem deste verso recorda a pedra “que do monte foi cortada… sem auxílio de mãos”, a qual provoca o fim catastrófico dos reinos deste mundo (2:45).

Se Cristo viu “o abominável da desolação” de Dan. 8:13, 11:31 e 12:11 encontrar cumprimento em seus dias (Mat. 24:15ss.), não há razão que nos obrigue a interpretar o “chifre” de Dan. 8:9 ss., como símbolo de Antíoco Epifânio, como se ele fosse o objeto principal desta profecia. É verdade que “muitos anticristos têm surgido” (I João 2:18), e Antíoco IV bem pode ter sido um deles. Mas há razões poderosas para não limitar o cumprimento desta profecia às atividades antijudaicas de Antíoco Epifânio.

Toda tentativa de interpretar o pequeno chifre do v. 9 exclusivamente como Antíoco está destinada a falhar. Em primeiro lugar, os símbolos representam reinos ou poderes, e não reis individuais (ver v.22). Antíoco IV era apenas um na longa lista de reis selêucidas, e de modo algum o mais ilustre. General muito mais competente que Antíoco IV foi seu pai Antíoco III, que conseguiu arrancar a Palestina das mãos dos Ptolomeus depois da batalha de Pânio em 198 a.C. Dificilmente poder-se-ia dizer de Antíoco IV que se engrandeceu ou “se tornou muito forte para o sul, para o oriente e para a terra gloriosa” (v.9), ou que prosperou em seus empreendimentos (v.12). Não conseguiu conquistar o sul – o Egito – de modo permanente. Com efeito, em sua segunda campanha contra o Egito em 168 a.C. foi obrigado pelo embaixador romano Pupilius Laenus a abandonar o Egito, ou sofrer as consequências. Nem teve Antíoco muito êxito em direção do oriente. Ao empreender uma guerra em Elão, em 163 a.C., foi frustrado em seus planos e morreu logo depois, deixando seu reino em desordem.1 Tão pouco teve êxito em sufocar a revolta dos Macabeus na Judéia. Um ano antes de sua morte os judeus reocuparam Jerusalém, rededicaram o templo, e para todos os efeitos práticos recuperaram sua independência.

Se, ao contrário, as afirmações do v.9 são aplicadas à Roma, elas são plenamente justificadas. Em suas conquistas extensas Roma subjugou Catargo e o Egito no sul, anexou toda a Ásia Menor, Síria e Mesopotâmia no Oriente, e colocou “a terra gloriosa” – a Palestina – sob seu domínio já em 63 a.C.

Digno de nota é o fato que do mesmo modo que em Dan. 7:9 ss. o foco de atenção é transferido da terra para o céu, o mesmo ocorre em Dan. 8:14 e seguintes. Deste modo um paralelismo consistente é mantido entre os dois capítulos. Ambos descrevem acontecimentos na terra bem como na esfera celeste, em harmonia com o caráter essencialmente religioso do livro. Em jogo neste conflito de dimensões cósmicas está a própria existência do povo de DEUS na terra bem como as verdades da fé cristã.

Verso 10 A hostilidade de Roma ao “povo santo” é retratada neste verso (conferir com o v.24). Ao perseguir a igreja Cristã nascente, Roma estava, com efeito, fazendo guerra ao “exército dos céus”. Ao perseguir os membros da Igreja Cristã, Paulo estava perseguindo a Jesus mesmo (At. 9:4 e 5).

Verso 11 A mudança do feminino para o masculino neste verso pode indicar, segundo G. Hasel2, a transição de Roma pagã para Roma papal. Para A. Lacocque, com a mudança de gênero “passamos da metáfora para a realidade simbolizada”.3 Roma papal “engrandeceu-se até o Príncipe do exército”, quando assumiu títulos e prerrogativas que pertenciam a Cristo e a nenhum outro. Ver o v.25 onde o “príncipe do exército” é chamado “príncipe dos príncipes”. Em Ap. 19:16 Cristo é chamado “Rei dos Reis e Senhor dos

senhores”. A mesma expressão “Príncipe do exército” se encontra em Josué 5:14 e 15, onde evidentemente indica um ser celestial.

A remoção do “sacrifício costumado” ou contínuo” (Heb.hattamid) é de importância capital nesta profecia. Hattmid refere-se primariamente aos holocaustos que eram oferecidos, sem interrupção, cada manhã e cada tarde, no Santuário, e que constituíam o centro do culto ali oferecido. Por intermédio do “contínuo” expiação e intercessão eram feitas a favor de Israel pelo sacerdote oficiante. Em tipo apontava para o futuro ministério de Cristo, de expiação e mediação, tanto na terra como no santuário celeste. A remoção do “contínuo” simbolizaria então a obliteração do ministério sacerdotal de Cristo no céu pela instalação de uma falsa mediação sacerdotal na terra.

O ato de deitar abaixo “o lugar de seu santuário” aponta para o fato que a própria existência de um santuário celeste, onde Cristo atua como Nosso Sumo-Sacerdote e único Mediador, seria ignorada durante séculos a fio. Quanto ao significado vital desta mediação e intercessão ver I Tom. 2:5; Hebreus 7:25 e 8:1-2. Tão indispensável tornou-se a missa e mediação sacerdotal na terra que não havia lugar na teologia católica para o santuário celeste.

Diga-se de passagem que Antíoco Epifânio nunca deixou por terra o Templo em Jerusalém, como a profecia específica. O que fez foi profaná-lo e isto durante o período de cerca de três anos. Neste ponto, como em muitos outros, ele não satisfez a descrição profética. Verso 12. O “exército” é interpretado no v.24 como sendo “o povo dos santos”.

Permissão divina para a entrega do “exército”, isto é para a perseguição dos santos, também é mencionada em Dan.7:21 e 25. Não somente os santos, mas também o “contínuo” seria o objeto da hostilidade do “chifre pequeno”.

A verdade que “foi deitada por terra” é certamente a verdade do evangelho, e particularmente aqueles aspectos da verdade relacionados com o santuário e “o sacrifício costumado”, em outras palavras, a verdade do ministério de mediação de Cristo no céu, que constitui o coração do evangelho (Heb.7:25).4 É este ministério que torna efetivo na experiência do crente individual o sacrifício oferecido por Cristo na Cruz. Ao passo que a morte de Cristo na cruz efetuou expiação pelos pecados “do mundo inteiro”(I João 2:2), é Sua obra mediatória que torna esta expiação significativa para o indivíduo quando ele professa fé em Cristo. Em outros termos, é a mediação sacerdotal de Cristo que torna efetiva para o crente individual a expiação histórica obtida na cruz a preço infinito. É compreensível porque esta verdade vital se tornaria o objeto dos mais acerbos ataques do anticristo.

Verso 13. A visão de todos os ultrajes cometidos contra o “contínuo”, o “santuário” e o “exército”, suscita da parte de um ser celeste a pergunta angustiada: “Até quando…?” O espetáculo deste conflito prolongado contra o povo dos santos e as verdades centrais do evangelho é causa de perplexidade mesmo para as inteligências celestes.

Verso 14. A resposta dada por outro anjo marca o ponto culminante de toda a visão: “Até duas mil trezentas tarde e manhãs, e o santuário será purificado.”

O termo no hebraico que corresponde a “justificado” é nitsdag, a forma nifal (passiva) do verbo tsadag. O significado primário de tsadag é “ser justo ou reto”, e como regra refere-se à gente. A referência ao santuário é excepcional, e os tradutores têm lutado para encontrar a melhor maneira de expressar seu significado aqui. A Septuaginta traduziu-o por Katarizesthai, “será purificado”, que é adotado na Versão de Almeida. Esta tradução tem muito a seu favor. Outros tradutores influenciados pela afirmação no v.11 de que o santuário seria “lançado abaixo” acharam melhor traduzir o verbo por “restaurar”, “vindicar”, ou expressão equivalente. Se o v.14 tem ligação com o ritual do dia da expiação, Yôm Kippur, como parece provável, então o verbo “purificar” seria uma tradução apropriada. Um dos propósitos daquele ritual era de purificar o santuário da impureza ali acumulada durante o ano decorrido toda vez que o povo confessava seus pecados e trazia o sacrifício requerido pela lei mosaica (Lev.16:16-19 e 30).

De certo modo o sangue espargido sobre o véu do santuário o contaminava (Lev.4:6 e 17). Se o sangue do sacrifício não era aspergido sobre o véu, então parte da carne do sacrifício era comida pelo sacerdote oficiante, e deste modo também o pecado era transferida para o santuário (Lev.6 verso 26 e 7 verso 6).

A restauração ou purificação do santuário celeste só pode significar o que o dia da expiação significava na dispensação mosaica – um dia quando a situação espiritual de todo israelita era determinada. Como a purificação do santuário terrestre significava garantia de salvação para todo israelita sincero, de igual modo a purificação do santuário celeste significa que a aptidão dos santos para o reino de Cristo está sendo determinada na base do julgamento que precede o advento.

Como no santuário celeste é que se realiza o ministério da salvação, o santuário está sob uma nuvem até que o problema do pecado seja finalmente liquidado, e que os caminhos do Senhor sejam reconhecidos como justos e verdadeiros por todos os remidos. O problema do pecado e do sofrimento projetada uma sombra a justiça do governo de Deus.

Quando o pecado for finalmente removido do santuário celeste pelo processo judiciário indicado em Dan.7:9-10 e 13-14, então o santuário brilhará de novo em sua glória original.

Com o rol dos remidos completado pelo tribunal celeste, Cristo recebe o reino, e “aparecerá segunda vez, não para lidar com pecado, aos que o aguardam para a salvação” (Heb.9:28, corrigido).

A visão de Dan.9:1-14 cobre o mesmo terreno que a de Dan.7:1-14, e culmina com o tribunal celeste em sessão. A linguagem é levemente diferente, mas os acontecimentos implicados são praticamente os mesmos. Em ambas as visões guerra é feita aos santos pelo quarto império, Roma imperial, ou seu herdeiro o papado. No cap. 7 a potência hostil profere “palavras contra o Altíssimo” (v.25); no cap. 8 a mesma potência se engradece “até ao príncipe do exército”(v.11). No cap. 7 uma tentativa é feita de “mudar os tempos e a lei”, no cap. 8 a verdade é lançada por terra (v.12). No cap. 7 “um como o Filho do homem”, vem ao Ancião de dias e recebe o reino (versos 13 e 14). Um reino sem súditos nada significa. Os súditos do reino eterno são determinados pelo tribunal celeste, quando livros são abertos, e o caráter dos santos vindicado (vv.10 e 22).

As “duas mil e trezentas tardes e manhãs” significariam antes de mais nada dois mil e trezentos dias. Levados pela opinião preconcebida que o tema principal dos cap. 7 e 8 tem que ver com as atividades hostis de Antíoco Epifânio contra a religião judaica, muitos comentadores se inclinam a introduzir tamid dos vv. 11,12 e 13. Em seguida assumem erradamente que o tamid (contínuo) significava cada um dos holocaustos da manhã e da tarde.

Racionando, então, que havia dois tamid por dia, o período profético acima é interpretado como 1150 dias, durante cujo tempo os sacrifícios no Templo teriam sido suspensos nos dias de Antíoco Epifânio. Nos parágrafos seguintes chamamos atenção para vários erra nesta interpretação.

Estritamente falando o substantivo tamid significa “continuidade”, e é frequentemente associado com olah, “holocausto”, assim olat hattmid, geralmente traduzido como “holocausto contínuo ou perpétuo”(Ex.29:42; Num.28:6,9,15, etc). Como resultado desta associação constante das duas palavras, hattmid tornou-se parte do jargão sacerdotal para designar o holocausto de dois cordeiros, dia após dia, um de manhã e outro à tarde (Núm.28 versos 2-6). Deve-se notar, porém, que hattmid designava dois sacrifícios juntos, e não cada u separadamente. São vistos como formando um só sacrifício composto de duas partes, como os caps. 28 e 29 de Números o tornam evidente. Quaisquer que fossem os sacrifícios oferecidos nos diferentes dias do calendário religioso, o holocausto contínuo de um cordeiro, de manhã e à tarde, juntos designados pelo singular ‘olat hattamid, nunca devia ser omitido.

Ignorando esta expressão idiomática do jargão sacerdotal muitos comentadores imaginam que o tamid de Daniel 8 significava apenas um dos dois holocaustos oferecidos regularmente cada dia. Daí era fácil saltar à conclusão que 2300 tamid significavam 1150 dias. Além disto deve-se notar que o termo tamid não se encontra no v.14, mas é nele introduzido para justificar uma opinião preconcebida.

Mas como o autor demonstrou alhures, a expressão “tardes e manhãs nunca poderia ser derivada da linguagem do culto, pois nesta a ordem “manhãs e tardes” é observada sem exceção.5 Neste caso não podia se referir aos holocaustos, e menos ainda ao hattamid.

Uma vez que não pode ser derivada da linguagem do culto, a expressão “tardes e manhãs” só pode ecoar a linguagem de Gênesis l, onde a expressão “tarde e manhã” designava cada dia da semana da criação.6

Não há, pois, razão para ler “1150 dias” no v.14. A expressão de tempo só pode significar 2300 dias. E como estamos lidando com linguagem simbólica, os 2300 dias devem ser interpretados como 2300 anos, em harmonia com outros períodos proféticos no livro de Daniel. Como estas profecias se estendem dos dias de Nabucodonosor até ao estabelecimento do reino eterno de Deus, um período de 2300 dias literais parece incongruentes neste contexto.

De outro lado, um período profético de 2300 anos se harmoniza perfeitamente com o imenso panorama que se abre nestas profecias. Assim compreendido os 2300 anos constituem o mais longo período referido nas profecias de Daniel e do Apocalipse. Como não é indicado neste capítulo o acontecimento que marca o início deste longo período profético, é razoável supor que ele seria o objeto de outra revelação num capítulo subsequente.

Versos 15 e 16. O tempo hebraico para “visão” no v.13 é hazon, o mesmo termo que aparece nos vv.2 e 2. É evidente que a “visão” que Daniel procura compreender abarca o conteúdo dos vv.2-14, e não se limitava de forma nenhuma à porção relacionada com as atividades do “chifre pequeno” contra a hoste do céu, a verdade e o santuário. O prólogo histórico que descreve as conquistas do “carneiro” e o “bode” é igualmente parte da visão.

Segue-se a pergunta feita no v.13: “Até quando durará a visão…?” abarca toda a visão, e não somente a segunda parte(vv.9-12).

O anjo encarregado de dar a Daniel compreender a visão foi Gabriel. Aqui pela primeira vez nas Escrituras é o nome de um anjo dado. Mas somente aqui e em 9:21 é o nome de Gabriel pronunciado. Esta sobriedade no uso de nomes de anjos contrasta com a pletora de nomes dados aos anjos pelos apocaliptistas do segundo século A.C. em diante. Um grande hiato separa Daniel de seus imitadores.

Verso 17. A aparição angélica enche a Daniel de pavor. Como Ezequiel seu contemporâneo, Daniel é também adereçado pelo título “filho do homem”, que sublinha tanto a nulidade do homem como um ser mortal, como sua dignidade como agente moral livre. Para começar Daniel é convidado a entender que a visão “se refere ao tempo do fim”. Bastava compreender este fato para que sua mente ficasse tranquila.

Versos 18 e 19. O profundo sono que caiu sobre Daniel foi sem dúvida o efeito de profunda tristeza, como aconteceu com os discípulos no jardim do Getsemane, dos quais Lucas diz que jesus “os achou dormindo de tristeza” (Luc.22:45). Abatido pela visão que sugeria ainda muito sofrimento para o povo de Deus, Daniel podia encontrar no sono um escape da dura realidade. Não era tempo para dormir, porém, mas de pôr-se de pé para ouvir o anjo explicar a visão.

A ênfase é de novo sobre o fato da visão referir-se “ao tempo determinado do fim”. De que “indignação” se fala aqui? Citando Isa. 61:1 e 2a em Seu sermão na sinagoga de Capernaum, Jesus declarou que a humanidade vivia então no tempo “do ano aceitável do Senhor”(Luc.4:18-19). O dia “da vingança do nosso Deus” ainda não chegara (Isa.61:2b). A indignação ou ira, então, deve ser a de Satanás, de que João no Apocalipse afirma que “desceu até vós, cheio de grande cólera”(Apoc.12:12). Enquanto durar a controvérsia entre a luz e as trevas, a humanidade vive no tempo da ira de Satanás, e não de Deus. Esta ira, porém, é limitada por Deus “ao tempo determinado”. O Altíssimo terá a última palavra neste conflito milenar.

Versos 20 a 22. Estes versos já foram mencionados no comentário sobre os vv.2- 8.

Verso 23. “Mas o fim do seu reinado”. Isto evidentemente se refere ao tempo quando os “quatro reinos”, nos quais o império de Alexandre foi dividido, perderam sucessivamente seu poderio, e foram absorvidos no império romano. Este fato exclui a interpretação que faz do “rei de feroz catadura” Antíoco Epifânio. Antíoco veio ao poder no fim da série de reis selêucidas, mas no meio.

“Quando os prevaricadores acabarem”. Uma tradução mais literal reza: “Quando os transgressores tiverem atingido sua plena medida”. Este é o único uso do termo “transgressor” no livro de Daniel. Com efeito o termo é usado parsimoniosamente na literatura profética: em Isaías uma só vez no singular (48:8), e seis vezes no plural (1:28, 46:8: 53:12 (duas vezes); Dan.8:23 e Oséias 14:9). Nunca é aplicado aos gentios. Somente membros da comunidade de Israel podiam se tornar “transgressores” ao quebrar a aliança que os ligava a Deus, o texto de Isa. 53:12 é particularmente útil para esclarecer o termo. É dito do Messias que “foi contado com os transgressores”, e que Ele intercede “pelos transgressores”. A nação judaica atingiu a plena medida como “transgressores”, quando rejeitou a Cristo como seu rei. Ao rejeitar o Messias a quem todos os tipos e profecias apontavam, a nação encheu a medida de sua transgressão, foi rejeitada como o povo particular de Deus e os herdeiros da promessa (Mat.21:43).7 Quando este acontecimento fatal ocorreu, abriu-se o caminho para Roma assumir seu papel de cúmplice na crucifixão de Cristo, e mais tarde de perseguidora da Igreja cristã nascente.

“Um rei de feroz catadura e entendido de intrigas”. A caracterização é bastante enigmática e o é a propósito. Parece ecoar a descrição que se encontra em Deut.28:49 e 50: “O Senhor levantará contra ti uma nação cuja língua não entenderás; nação feroz de rosto…” O sofrimento enorme que esta nação infligiria ao povo judeu lembra-nos as condições horríveis em Jerusalém durante a Guerra Judeo-Romana de 66-70 A.D. Uma linguagem muito parecida foi usada por nosso Senhor ao descrever a invasão da Judéia pelos exércitos romanos em Mat.24:15-21. Foi em relação com esta calamidade iminente que Ele se referiu “ao abominável da desolação de que falou o profeta Daniel”. Muitos comentadores concordam que a “abominação desoladora” designa os exércitos romanos que dentro de pouco tempo estariam invadindo o “lugar santo”.

É sobre tudo a convicção de que as profecias de Dan.2,7 e 8 constituem profecias paralelas que nos habilita a ver no “chifre pequeno” de Dan. 8:9-12, e no “rei de feroz catadura” de nosso verso, símbolo do quarto império mundial. Compreende-se melhor quão apropriada é esta descrição quando se contempla o quarto império em sua dupla fase: secular e religiosa. Que Roma papal em muitos aspectos foi a herdeira de Roma imperial tem sido reconhecido por muitos historiadores eclesiásticos. Assim Adolfo Harnack escreve:

Os poucos elementos romanos que os bárbaros e os arianos deixaram… foram… postos sob a proteção do Bispo de Roma, que era a pessoa principal na Itália depois do desaparecimento do Imperador … A igreja Romana deste modo sutilmente insinuou-se no lugar do Império Romano, do qual ela é a continuação real; o império não pareceu, mas sofreu uma transformação… Esta não é uma “observação arguta”, mas o reconhecimento do estado real das cousas historicamente, e o modo mais apropriado e frutuoso de descrever o caráter desta Igreja. Ainda governa as nações… É uma criação política, e se impõe como um Império Mundial, porque é a continuação do Império Romano. O Papa, que se intitula “Rei” e “Pontifar Máxima” é o sucessor de César.8 “Entendido de intrigas”. Esta frase é paralela a de Dan.7:8 onde se descreve o décimo-primeiro chifre: “e eis que neste chifre havia olhos, como os de homem,” descrição esta interpretada como uma referência à acuidade política de Roma papal demonstrada em suas relações com as nações da Europa. Na gíria moderna dir-se-ia que Roma entende a linguagem da diplomacia com todas suas obscuridades deliberadas.

Verso 24. este verso resume muito do que foi dito do quarto império mundial em Dan.7:7-8. Roma usou seu incomparável poderio militar para esmagar as nações a seu belprazer, bem como para destruir “o povo santo”. Para este aspecto da história nada lisonjeira de Roma ver os comentários nos versos paralelos de Dan.7:21-25.

Verso 25. “Por sua astúcia nos seus empreendimentos fará prosperar o engano”. Este é o retrato fiel da duplicidade de Roma em seu trato com seus adversários e mesmo aliados, bem como do papado em prestar seu apoio a uma teologia que adulterou a verdade do evangelho. “No seu coração se engrandecerá”. Do ponto de vista do céu esta potência é chamada “pequena”(v.9). Mas em sua fantasia se consideraria um deus na terra. Paulo sem dúvida tinha esta passagem em mente quando descreveu a vinda do anticristo como “o homem da iniquidade, o filho da perdição, o qual se opõe e se levanta contra tudo que se chama Deus, ou objeto de culto, a ponto de assentar-se no santuário de Deus, ostentando-se como se fosse o próprio Deus” (II Tess.2:3b e 4).

“Levantar-se-á contra o Príncipe dos príncipes”. Esta frase bem como a anterior, expande o sentido de Dan.8:11: “Engradeceu-se até o príncipe do exército”. Como o chifre descrito nos vv.9-12 se refere à Roma em suas duas frases, imperial e papal, reconhece-se facilmente como Roma imperial se levantou contra Jesus Cristo crucificando-O e mais tarde perseguindo Seus discípulos, e como Roma Papal por sua teologia diminuiu o papel de Cristo aos olhos dos crentes, exaltando a mediação de Maria e dos santos, e excomungou aqueles que rejeitaram doutrinas como o sacrifício da missa, a transubstanciação, e a mediação sacerdotal de Maria.

“Mas será quebrado sem esforço de mão humana”. Do mesmo modo que os reinos deste mundo simbolizados pela estátua de Dan.2 foram esmiuçados por uma pedra “cortada sem auxílio de mãos” (vv.34 e 35), assim aqui o anticristo, que em sua guerra contra DEUS faz uso de toda potência terrestre disponível, é quebrado “sem esforço de mãos humanas”. DEUS intervém ao final para desbaratar as forças das trevas e inaugurar Seu reino eterno, no qual “habita justiça (II Ped. 3:13).

Verso 26 A visão deste capítulo é referida na linguagem angélica como “a visão da tarde e da manhã”, porque o período de 2300 dias proféticos do v.14 constituem um dos seus aspectos primordiais. A presença do artigo antes de ereb e boqer não modificam de modo algum seu significado como um dia de vinte e quatro horas.9

A ordem de selar a visão é justificada pela declaração que ela se “refere a dias ainda muito distantes”. Para os que tomam o livro de Daniel como um livro profético autêntico, e não como uma ficção escrita no segundo século antes da nossa era, estas palavras indicam que o pleno significado da profecia não se tornaria evidente antes do cumprimento histórico de suas várias partes. Seu desfecho jazia ainda muitos séculos no futuro, mas sua autenticidade levava o selo de DEUS.

Verso 27 O efeito físico sobre Daniel desta visão de um longo conflito foi deprimente. Ele “esteve enfermo durante alguns dias”. O pleno significado da visão se lhe escapava, mas a parte que ele entendeu deste conflito milenar que punha em risco a própria sobrevivência do “podo dos santos” o encheu de consternação.

Um olhar sobre a interpretação da visão pelo anjo deixa claro que um ponto que não foi explicado foi o longo período do v.14. Parece provável, então, que Daniel confessa sua falta de entendimento, ele tem em mente esta parte da visão mais que qualquer outra. Como reconciliar a perspectiva de um longo período de sofrimento para o povo de DEUS ainda no futuro com o cumprimento iminente dos 70 anos preditos pelo profeta Jeremias, estava além de seu alcance. O cap. 9 responderá às perguntas que agitavam sua mente.

Observação sobre o Chifre Pequeno

Objeta-se frequentemente contra a interpretação do “chifre pequeno” como símbolo de Roma alegando que o v.9 afirma que o chifre pequeno saiu “de um deles” (assim no hebraico). O argumento gira então sobre se “deles” refere-se aos “4 chifres notáveis”, ou dos “4 ventos dos céus”, do v.8. Razões gramaticais e estruturais favorecem a opinião que o pronome “deles” refere-se aos “4 ventos”.10 O significado então seria que Roma surgiu de uma das direções do compasso. Como o verso diz que sua expansão territorial foi na ordem, “para o sul, para o oriente, e para a terra gloriosa”, segue-se que Roma iniciou sua carreira de conquista do noroeste. Isto corresponde aos fatos geográficos, visto que Roma ficava a noroeste do Império Greco-Macedônico.

Mas mesmo se se insiste que o “chifre pequeno” saiu de um dos “4 chifres” em que o império de Alexandre se desmembrou, isto não constitui objeção séria à interpretação adotada neste comentário. Roma deveu muito de sua cultura aos gregos que estavam colonizando o sul da Itália desde o sétimo século a.C. Com efeito aquela parte da Itália foi conhecida durante muito tempo como Magna Grécia. Interferência dos gregos com ambição territorial de Roma no sul da Península Itálica e na Sicília, ambas pontuadas de colônias gregas, foi a causa da Primeira Guerra Macedônica. Este fato marcou o início de uma série de guerras que levaram Roma a conquistar uma após outra as diferentes divisões do império fundado por Alexandre.

Alguns acham difícil reconciliar a ideia de Roma como o maior dos impérios da antiguidade com sua descrição como um chifre pequeno no v.9. Theodotion aparentemente sentiu a dificuldade de traduzir o hebraico por um “chifre poderoso”. Talvez tivesse diante dos olhos um texto hebraico diferente. O hebraico reza literalmente, “um chifre de pequenez”. A New International Version retém a força da expressão traduzindo, “que começou pequeno”.

Roma começou de fato pequena, e ninguém poderia ter predito sua eventual grandeza julgando seu começo humilde. De outro lado é possível que o adjetivo “pequeno” tenha uma conotação moral e não física. A conduta arrogante em relação ao Altíssimo e a Seu povo fê-la parecer “pequena” os olhos do céu. “Pequena”, neste contexto, significaria desprezível.

NOTAS

1. The Cambridge Ancient History, Vol VIII (Cambridge, 1954), p.514.

2. The Sanctuary and the Antonement, (Review and Herald, 1981), p. 188.

3. The Book of Daniel, p. 159.

4. Segundo N. Porteous, Daniel, p. 186, “A verdade que é lançada por terra é a vontade de DEUS revelada em Sua Lei”.

5. “‘ereb boqer’ de Dan. 8:14 re-examinada”, AUSS (1978): pp. 375-385.

6. C. F. Keil, Book of Daniel, tr. (Eerdmans), pp. 302-304.

7. Ver E. G. White, Educação, pp. 173-177.

8. What is Cristianity? (New York, 1903), pp.269-270.

9. C. F. Keil, Op. Cit., p. 303.

10. W. Shea, Daniel and the Judgment, (Washington, 1980), p. 65.

Você pode ler os estudos dos capítulos do Livro de Daniel aqui

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