Conversando sobre Gálatas com F. ROY COAD

Fonte: Comentário Bíblico. Bruce, F. F. Nova Versão Internacional Antigo e Novo Testamentos / editor geral F. F. Bruce; tradução: Valdemar Kroker. — São Paulo: Editora Vida, 2008. Título original: New International Bible commentary based on the NVI

A carta aos Gálatas, felizmente, está isenta de problemas de crítica concernentes à autoria; os estudiosos têm sido praticamente unânimes em endossá-la como obra genuína do apóstolo Paulo. Os problemas que existem estão relacionados à data de composição da carta e à localização das igrejas às quais foi endereçada.

Em meados do século I, a província romana da Galácia abrangia uma grande parte da região central da chamada Ásia Menor. A parte a nordeste da província, concentrada em torno das capitais tribais Pessino, Ancira e Tavium, era controlada por um povo de origem Celta ou Gália (daí o nome Galácia — cf. Gália e Galícia), que havia ocupado a região aproximadamente 300 anos antes e estabelecido o domínio sobre os habitantes anteriores. As suas terras ficavam distantes das principais rotas comerciais e de passagem da região naquela época, em bora fossem se desenvolver por sua conta de forma brilhante em séculos posteriores, depois de Constantinopla se tornar o centro do governo imperial e as principais estradas passarem por Ancira (a atual Ancara).

Em contraste com isso, a parte a sudoeste estava baseada nas colônias romanas de Antioquia da Pisídia e de Listra (uma terceira cidade, Icônio, também se tornou colônia, em época posterior). Por ela, passavam as importantes estradas que levavam à Síria e ao leste das cidades gregas da costa ocidental da Âsia Menor, e os habitantes nativos (frígios em torno de Antioquia e licaônios em torno de Listra) tinham sido fortemente influenciados pelos hábitos estrangeiros: dos gregos, que haviam vindo após Alexandre; dos judeus, que haviam sido estabelecidos ali pelos reis selêucidas; e, depois, dos conquistadores romanos.

Os debates em torno do destino e da data da carta estão intimamente ligados a essa divisão dessa província em regiões. Podemos distinguir três pontos de vista principais.

1) Que a carta foi escrita a igrejas supostamente organizadas por Paulo na parte norte da Galácia. Esse é o ponto de vista mais antigo, mas perdeu muito terreno desde as pesquisas de sir W. M. Ramsay, nos anos finais do século XIX, acerca da história e dos povos da Ásia Menor em tempos antigos.

2) Que foi escrita às igrejas que inegavelmente haviam sido organizadas por Paulo no sul da Galácia durante a sua primeira viagem missionária, mas que a carta foi escrita em algum momento depois de uma de suas visitas posteriores àquelas igrejas.

3) Que a carta foi escrita àquelas mesmas igrejas, mas imediatamente após a primeira viagem missionária e antes do concílio apostólico de At 15.

O terceiro ponto de vista é o aceito por este comentário, e uma explicação dessa perspectiva se torna necessária nesse ponto.

O destino da carta

Atos menciona a Galácia (ou, mais corretamente, o território galácio) duas vezes nos seus relatos das viagens de Paulo: uma vez em 16.6, na etapa não principal da sua segunda viagem missionária, e novamente em 18.23, numa etapa não destacada no livro de Atos da sua terceira viagem missionária. Até o final do século X IX, essa Galácia era comumente considerada a região norte da província romana que levava esse nome, a única parte que era habitada por pessoas estritamente pertencentes à raça galácia. A parte sul da província mais tarde foi separada da Galácia, e assim havia a tendência de negligenciar o fato de que ela fazia parte da Galácia nos dias do apóstolo. Assim, em cada uma dessas jornadas, se pensava que Paulo havia sido desviado das rotas que conduziam diretamente ao oeste ou ao noroeste através da Ásia Menor para visitar essa região. Ele certamente não visitou o norte da Galácia na sua primeira viagem. As igrejas que ele estabeleceu nessa parte norte da Galácia, assim se acreditava, eram aquelas às quais essa carta foi escrita.

Esse ponto de vista apresentava três dificuldades principais. Em primeiro lugar, não há outras indicações conhecidas de que Paulo tenha estabelecido igrejas no norte da Galácia, que estava muito distante dos centros egeus da sua obra e das estradas que levavam a essa região. Essas ideias também parecem estar em discordância com o que conhecemos da estratégia missionária de Paulo. Em segundo lugar, se a carta não foi escrita senão durante ou após as viagens posteriores do apóstolo, deve ter sido escrita bem depois do concílio de Atos 15, quando exatamente a questão em discussão na carta foi tratada em Jerusalém.

Nessa ocasião, uma declaração unânime e autorizada foi elaborada por aquela igreja, sob a autoridade de Tiago, os apóstolos e anciãos. Em tais circunstâncias, seria inconcebível que essa carta não fizesse referência algum a àquela decisão, mesmo que esboçasse novamente toda a argumentação. (Não tem peso a resposta de que também não se faz menção às decisões do concílio em I Coríntios 8 ou 10. A questão discutida aí, a de sacrifício de alimentos aos ídolos, foi de fato tratada nas decisões do concílio de Jerusalém, mas era periférica ao debate; tampouco as conclusões de Jerusalém eram relevantes em termos gerais para as questões em Corinto. Por outro lado, a carta aos Gálatas trata de toda a questão da obediência aos preceitos judaicos, que era exatamente o ponto central crítico do concílio de Jerusalém.)

Em terceiro lugar, esse ponto de vista é em geral associado à identificação da visita de Paulo a Jerusalém descrita em Gálatas 2 com a de Atos 15; um ponto de vista que conduz quase inevitavelmente à conclusão de que um dos dois relatos é incorreto (v. comentário de Gálatas 2.1-10 adiante).

Para defender o ponto de vista contrário a esse, muitos comentaristas buscam os destinatários dessa carta nas igrejas estabelecidas por Paulo na sua primeira viagem missionária na parte sul da província romana da Galácia. Embora Lucas não use o termo no seu relato daquela viagem em Atos 13 e 14, elas estavam localizadas dentro do território galácio. A obra de sir W. M. Ramsay ao final do século X IX estabeleceu razões convincentes, fundamentadas no profundo conhecimento das condições políticas e sociais da Âsia Menor do século I, para se crer que a carta foi dirigida a essas igrejas. Esse ponto de vista se harmoniza de forma convincente com outros dados bíblicos e é aceito amplamente por estudiosos britânicos e americanos.

A data de composição da carta

Mesmo que esse segundo ponto de vista com relação aos destinatários dessa carta seja aceito, ainda assim a sua data precisa ser determinada. Muitos comentaristas, impressionados pela semelhança de pensamento e estilo dessa carta com a carta aos Romanos, creem que ela foi escrita na mesma época de Romanos, provavelmente durante a terceira viagem missionária. Outros acham que foi escrita exatamente antes dessa viagem (esse era o ponto de vista inicial de Ramsay, mas depois ele a datou antes do concílio de Atos 15). (V. tb. Hogg e Vine, p. 7.) Mas esse ponto de vista ainda deixa sem solução a segunda dificuldade citada anteriormente, e, normalmente, também a terceira.

Uma tentativa de explicar a segunda dificuldade, a falta d e menção às decisões em Jerusalém de Atos 15, é feita com a sugestão de que as ações de Paulo com relação a essas decisões, descritas em Atos 16, tinham elas mesmas dado força às alegações de seus oponentes. Ele tinha se esforçado em passar as decisões às igrejas do sul da Galácia, assim fazendo as igrejas concluírem que a sua autoridade apostólica estava sujeita à dos líderes em Jerusalém. Ele também tinha circuncidado Timóteo, assim fortalecendo a facção da circuncisão. Então, nesse ponto de vista levamos em consideração as expressões “ainda que nós” em Gálatas 1.8 e a alegação de que ele mesmo pregava a circuncisão (mencionada em Gálatas 5.11). Essas duas questões, a autoridade de Paulo e os ensinos da facção da circuncisão, são os dois temas principais da carta.

Contudo, esse ponto de vista certamente torna a falta de referência direta às decisões que tinham gerado o mal-entendido ainda mais inexplicável: particularmente quando a incircuncisão de Tito é discutida especificamente (2.3ss). Uma referência ao incidente relativo a Timóteo teria sido inevitável, segundo essa hipótese.

As duas dificuldades são eliminadas pela consideração de que a carta foi escrita antes de terem ocorrido os eventos de Atos 15. E interessante e importante que Calvino tenha chegado a essa conclusão simplesmente com base nas evidências internas (v. o comentário dele acerca de 2.1-5), embora isso não o tenha levado às implicações quanto aos destinatários da carta a situação, então, fica clara. Paulo, tendo retornado a Antioquia da sua primeira viagem missionária, enfrenta num a controvérsia os mestres judaizantes de Jerusalém que, como sabemos com base em Atos 15.1, visitaram a cidade nessa época (v. tb. G1 2.12). Enquanto ele está empenhado nessa polêmica, recebe a notícia de que mestres semelhantes, que o seguem de perto, visitaram as recém-organizadas igrejas da sua primeira viagem (Atos 13 e 14) e estão obtendo sucesso na negação e destruição do trabalho dele. O resultado é essa carta escrita com muita urgência e sob grande pressão emocional. As questões que ela levanta iriam produzir, algum as semanas depois, o concílio de Jerusalém.

Se esse terceiro ponto de vista for aceito, isso tem importantes implicações para a cronologia do NT e a compreensão do progresso e desenvolvimento da doutrina no NT. Gálatas se torna a primeira das cartas do NT, escrita em 48 ou 49 d.C, menos de 20 anos após a crucificação. Seguindo os dados na própria carta, temos de datar a conversão de Paulo em aproximadamente 33 d.C. Esse ponto de vista tem outras implicações de longo alcance, que não podem ser tratadas aqui; uma dificuldade importante, com respeito à visita que Paulo fez a Damasco, é mencionada no comentário em 1.18-24.

v.18-24. A visita a Jerusalém mencionada aqui também está registrada em Atos 9.23-30. Com base nesse texto, vemos que a apresentação de Paulo a Pedro não foi facilmente realizada antes que Barnabé se tornasse amigo dele. Paulo acrescenta a seguinte informação àquilo que concluímos do texto de Atos. 1) Em Jerusalém, os “apóstolos” a quem Barnabé o apresentou (Atos 9.27) eram somente dois em número (Tiago, embora não fosse um dos Doze, satisfazia as exigências do apostolado) (v. 19).

2) Paulo indica que o encontro e a consulta (historêsai) com Pedro foi um propósito definido da sua visita a Jerusalém; um propósito por parte do discípulo de Gamaliel que reconhece publicamente a capacidade intelectual e espiritual do pescador Galileu (v. 18).

3) Embora Paulo andasse “com liberdade em Jerusalém” entre eles (Aos 9.28), não tinha conseguido visitar as igrejas da Judéia ainda (v. 22)

4) Alguns alegam uma discrepância entre os quinze dias do v. 18 e o período evidentemente mais longo sugerido por Atos; mas o primeiro período refere-se explicitamente somente à duração da estada de Paulo com Pedro.

Em 2 Coríntios 11.32, Paulo nos conta que a sua fuga de Damasco ocorreu enquanto a cidade era governada por um governador apontado por Aretas, rei dos nabateus. Na cronologia discutida anteriormente, a data da fuga de Paulo teria sido 35 ou 36 d.C. (precisam os levar em consideração a forma inclusiva de cálculo do tempo). Acerca dos problemas relacionados a isso, veja no NBD os artigos “Aretas”, “Cronologia do NT ” e “Paulo” .

Atos também se refere ao retiro de Paulo na Síria e na Cilicia, com a informação mais específica de que Paulo retornou a Tarso, sua cidade natal (Atos 9.29,30). Os nomes Síria e Cilicia são os de uma divisão política romana combinada, e isso não significa necessariamente que Paulo tenha visitado a Síria propriamente dita, embora isso seja possível. Compare também Atos 22.17-21, em que ficamos sabendo que a urgência dos companheiros de Paulo foi confirmada por uma visão.

Paulo então desaparece do relato de Atos por um período de aproximadamente quinze anos, até q u e Barnabé o leva de Tarso, na Cilicia, para Antioquia, na Síria (Atos 11.25,26). Que esses não foram anos de inatividade, fica claro pelas referências nas outras cartas. Muitas das experiências que Paulo descreve em 2 Coríntios 11.23-27 podem ser datadas nesse período, incluindo as visões diretas de Deus de 2 Coríntios 12.2-4. A evangelização que Paulo empreendeu da sua região natal durante esse período, claramente sugerida em Gálatas 2.2, também explicaria o fato de ele ter evitado a Cilicia na sua primeira viagem missionária, em que os missionários viajaram ao continente via Chipre, a ilha natal de Barnabé.

O zelo de Paulo em declarar a exatidão do seu relato (v. 20) indica quanto esses fatos eram importantes para a sua argumentação. Ele ainda está destacando o fato de ter ficado isolado de influência, a não ser da de Pedro e Tiago. A unidade com esses dois líderes, sugerida tacitamente por esse relato, poderia, por outro lado, acrescentar força à sua argumentação.

[Observação: v. 23. a fé. o uso de “fé” como sinônimo de evangelho certamente está em concordância com toda a exposição contida nessa carta. Cf. Lightfoot in loco.]

Você pode ver mais estudos de Gálatas aqui

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