A graça de Jesus substituiu a lei de Moisés?

Por Tom Shepherd

Fonte: Interpretando as Escrituras- CPB

“Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo (João 1:17).

Essa não é uma pergunta sem importância. A resposta a ela serve, não só como uma chave para interpretar o evangelho de João, mas também para determinar, em grande medida, como entendemos a relação entre o Antigo e o Novo Testamento. Exerce ainda uma influência radical e formativa sobre nossa caminhada cristã pessoal, respondendo à relevante pergunta: Devo obedecer aos mandamentos encontrados na lei? Mas, para dirimir todas essas questões importantes, cumpre-nos começar com o contexto original da pergunta, no capítulo 1 do evangelho de João.

Um hino sobre Jesus Cristo – O evangelho de João começa com um belo hino sobre quem é Jesus Cristo. Está escrito em quatro estrofes. A primeira estrofe (1:1-5) fala de Sua existência eterna, do poder criativo e vida plena de luz. A segunda estrofe (1:6-8) O compara e contrasta com João Batista, traçando interessantes paralelos com a primeira estrofe (ou seja, enquanto o Verbo [Jesus Cristo] estava com Deus, João foi enviado por Deus). Jesus é apresentado sempre como superior a João.

A terceira estrofe (João 1:9-13) descreve a forma como as pessoas reagem a Jesus: quer rejeitando-O, quer aceitando-O. A quarta e última estrofe (1:14-18) descreve a encarnação de Jesus, “o Verbo Se fez carne e habitou entre nós” 1 e a reação dos crentes a essa revelação. João afirma que Jesus tem precedência sobre ele: “O que vem depois de mim tem, contudo, a primazia” (1:15). Os crentes dão testemunho de que todos receberam da Sua plenitude e graça sobre graça (1:16). Isso nos leva ao texto em questão, o v. 17, no qual se diz que a lei foi dada por intermédio de Moisés e a graça e a verdade vieram por meio de Jesus. O hino conclui no v. 18, reafirmando a íntima relação entre Deus, o Pai, e Jesus Cristo, o Filho: “Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem O revelou.”

Cristo, o intermediário da graça e da verdade – João 1:17 concentra a atenção sobre Jesus Cristo. Ele é o agente por meio do qual as bênçãos da graça e da verdade chegam até nós. Independentemente de qualquer outra coisa que possamos dizer a respeito da passagem, essa verdade é uma bênção clara e maravilhosa em nossa vida. Mas qual é a relação entre a primeira parte do versículo que trata de Moisés e a última parte que trata de Jesus? As duas partes se complementam ou estão em contraste uma com a outra? Em outras palavras, conforme se formulou na pergunta acima: foi a lei de Moisés substituída pela graça de Jesus?

A melhor maneira de responder a essa pergunta é colocar João 1:17 no contexto da quarta estrofe do hino (1:14-18). A estrofe começa com a declaração bastante singular do v. 14: “O Verbo Se fez carne.” O que é inconfundível aqui é a mudança no verbo utilizado para descrever Jesus Cristo. Nos versículos anteriores, Ele é descrito mediante o emprego de um verbo comum no grego, o verbo eimi (“ser”). Nesse contexto, o verbo sugere existência eterna, especialmente quando contrastado com o verbo “vir” (ginomai) usado para descrever João Batista, no v. 6. Jesus, o Verbo, era; mas João Batista veio a ser. Jesus é eterno; João tinha um tempo determinado desde o princípio.

“Para os cristãos que foram instruídos numa visão negativa a respeito da lei de Moisés, resultado de uma interpretação equivocada dos escritos de Paulo e de uma desnecessária bifurcação entre lei e graça, a tentação é interpretar esse versículo [João 1:17] como um golpe contra a lei. No evangelho de João, Moisés é considerado um servo de Deus (por exemplo, 5:45- 47; 6:32; 7:19-23). O problema de Jesus neste evangelho não era com Moisés nem como a lei; o problema era com os judeus desobedientes que faziam mau uso de Moisés e da lei (por exemplo, 6:31, 32; 9:28, 29)” (Gerlad L. Borchert, John 1–11, The New American Commentary [Nashville, TN: Broadman & Holman, 2002], p. 123).

Mas, em João 1:14, o hino diz que “o Verbo Se fez carne”. O Verbo eterno de Deus entrou na existência humana. O apóstolo aplica esse outro verbo (ginomai) a Jesus Cristo: Ele veio a ser carne. João enfatiza ainda mais essa ideia quando diz que o Verbo “armou Sua tenda” entre nós, habitou entre nós. Trata-se de uma clara alusão a Êxodo 25:8, em que Deus diz aos israelitas: “E Me farão um santuário, para que Eu possa habitar no meio deles.” Contemplar a glória do Filho unigênito de Deus é como ver a coluna de fogo e de nuvem sobre o santuário do Antigo Testamento. Cristo tornando-Se humano é Deus conosco, conforme nos diz Mateus: “Emanuel” (Mateus 1:23).

Graça sobre graça – A aparição da glória de Deus nas Escrituras (o termo técnico é teofania) exige uma reação humana. Essa reação é exatamente o que acontece em João 1:15, 16, quando, tanto João como “nós”, a igreja, reagimos à gloriosa luz do Filho de Deus em carne humana. A última frase no v. 16 expressa a abundância: “graça sobre graça.” 2 Mas parece que o apóstolo queria expressar essa opulência cada vez maior de graça em mais detalhes, portanto escreveu o v. 17. João 1:17 começa com a palavra “porque” em grego hoti. Essa palavra indica a razão ou explicação do que foi dito antes. O v. 16 explica a superabundância da graça de Deus para nós. O v. 17 o esclarece com mais detalhes. Uma tradução literal do grego seria a seguinte: Visto que a Lei foi dada por intermédio de Moisés, a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.

Captamos aqui vários conceitos importantes. Primeiramente, já vimos que a palavra “porque” no início do versículo cria com o v. 16 uma relação explicativa. Seja qual for o significado de “sobre graça” do v. 16, é no v. 17 que a expressão se explica ou se “desempacota”. Em segundo lugar, o v. 17 tem duas orações paralelas. A lei é posta em paralelo com “a graça e a verdade” (ambos os termos têm artigo definido no grego, assim como a lei), e Moisés é colocado em paralelo com Jesus Cristo. Em terceiro lugar, não há conjunção entre a primeira e a segunda oração do v. 17: nem “e”, “embora”, “mas” nem “ou”. O termo técnico para essa construção é assíndeto, que designa a omissão de uma conjunção que normalmente uniria as orações. Emprega-se com frequência esse recurso para realçar conceitos, como por exemplo: “Vim, vi, venci” em vez de “Vim, vi e venci”! Parece que o apóstolo quer sublinhar a duas frases de uma forma dramática.

E o que isso sugere? No v. 16, o apóstolo insiste que todos temos recebido uma superabundância de graça da plenitude transbordante de Jesus Cristo. No v. 17, somos informados repentinamente que a lei foi dada por intermédio de Moisés. Por quê? A lei era algo ruim ou algo que precisava ser removido? Não. Na verdade, era parte da revelação divina comunicada no Antigo Testamento para abençoar o povo. Essa antiga revelação era boa. A nova revelação dada por Jesus é ainda melhor e mais gloriosa (ver 2Co 3:4-18). No passado, Deus revelou-Se em uma coluna de nuvem e de fogo; então Ele veio em carne. Antes, não podíamos ver-Lhe o rosto, agora podemos vê-Lo em Seu Filho. “A teoria de que o v. 17 contrasta a ausência de amor duradouro na lei com a presença do amor duradouro em Jesus Cristo não parece fazer justiça à referência honorífica de João a Moisés (v. 45, 46). Pelo contrário, o v. 17 contrasta o amor duradouro revelado na lei com o exemplo supremo de amor duradouro demonstrado em Jesus. 3

Conclusão – A lei de Moisés foi substituída pela graça de Jesus? Não, a lei e a graça não são coisas opostas; elas operam lado a lado. A lei mostra a nossa necessidade, a graça a atende. A graça concede-nos o perdão; a lei aponta o nosso dever. O Antigo Testamento prediz a vinda do Libertador; o Novo Testamento cumpre essa predição. O evangelho de João não contrapõe Jesus à lei de Moisés. Pelo contrário, o Senhor Se opõe à interpretação errônea da lei feita pelos líderes religiosos de Seus dias. A lei continua a ter relevância hoje. É vital entendermos que a nossa caminhada pessoal dentro da graça do Senhor Jesus envolve obediência à lei que Deus deu por intermédio de Moisés. A luz era gloriosa no Sinai, é ainda mais gloriosa na cruz. O Mestre morreu para que pudéssemos viver para Ele em obediência a Seus mandamentos.

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1 Todas as traduções são do autor (e retraduzidas pelo tradutor), salvo indicação em contrário.

2 Essa expressão ocupa lugar muito importante na interpretação do v. 17. O grego é charitos anti charitos. Para alguns intérpretes, o emprego da palavra grega anti (“oposto, em vez de, em lugar de, contra”) indica um contraste: a graça de Jesus em lugar da lei de Moisés. O problema com esse ponto de vista é duplo. Primeiramente, seria a graça em lugar de graça, e não a graça em lugar da lei. Em segundo lugar, o escritor judeu Filo do primeiro século d.C. dá um exemplo de uso da palavra (Philo, Poster. Cain. 145), que ilustra claramente a compreensão da expressão como “graça sobre graça”. Ver W. Bauer, W. F. Arndt, FW Gingrich e Danker F., A Greek-English Lexicon on the New Testament and Other Early Christian Literature, 2ª ed. (Chicago: University of Chicago Press, 1979), s.v. anti.

3 Raymond Brown, John I–XII, Anchor Bible Commentary v. 29 (Garden City, Nova York: Doubleday, 1966), p. 16.

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